Carlos,
Ionesco e N’Dinga
Os livros bons são os que procuram (e
encontram) gente que coincida com eles. Há anos que porfio as estopinhas para
ser capaz de um – até hoje, porém, nem um dos que já fiz ao desbarato dos anos
me trouxe população a suficiente para uma matraquilhada completa: a minha
carreira por assim dizer literária tem sido jogar sozinho ao varão da baliza e
ao idem do ataque. Cheiro a óleo e a pano de desperdício, mas coincido comigo.
É justo. Mas.
Mas, aqui há dias poucos, aconteceu-me uma
epifania gentil. Foi no Café Colonial (o da Rosa, vós sabeis, aquele ali além).
É lá que me dedico às minhas três principais tarefas: escrever, escreviver
& escrebeber. Cada uma leva às outras duas. (Posto assim, parece magia – e
é-a.)
Foi portanto no Colonial da Rosa. Tinha eu
acabado de revisitar uma frase portentosa de um gajo romeno chamado Ionesco: “Cada um de nós é o primeiro a morrer.” Senti-me
logo coincidido. Verdade. Um gajo
nasce como toda a gente, mas morre só como só um. A vida é tipo Maria-vem-como-as-outras.
A morte faz-nos príncipes, aniversariantes do mesmo eterno dia. Pena que tal
palaciana glória dure tão pouco, pena tanto gás para tão pouco champanhe. Mas
adiante.
Foi então que ele entrou. Chama-se Carlos.
Cavalheiro freguês, há bem mais décadas do que eu, do Colonial, é de olhos
líquidos, vívidos e vividos. Delicado no falar e no manusear, a primeira e
talvez mais definitiva impressão que dá – é a de alguém que gosta de viver. E
do que viveu. E do que viver lhe falta, por tanta falta sentir que viver lhe
faz.
Este senhor costuma tomar o abatanado e a
meia-torrada em mesa da minha vizinha. Deve ter pensado, se calhar mal, que eu
seria capaz de escrever a história dele. Que é esta:
A 17 de Julho de 2005 foi-lhe diagnosticado
um linfoma sublingual. Cancro. Cancro tem seis letras, a primeira é C – como
Carlos. Ele tinha completado 57 anos oito dias antes: era um rapaz, portanto.
Moço de mais para saber se Ionesco está ou não certo.
Até então, uma vida de trabalho resgatada
aos trabalhos da vida: moço-de-recados aos 13 anos, contabilista aos 19 (idade
em que se casa com outra criança como ele), supervisor turístico aos 24. Falida
a Torralta para que trabalhava, embarca a partir dos primeiros tempos pós-25 de
Abril no ofício de “olheiro” de futebol em África. Para Vitória de Guimarães,
Desportivo de Chaves, Leixões, Rio Ave e FCP, viaja e “olha” por Gana,
Zimbabwe, Congo(s), Mali.
Acumulando-se representante de vinhos
alentejanos e durienses na zona Centro do País, conhece finalmente Ivone, que
para médica estudava em Coimbra. Casa-se com ela logo que pôde, que só olhar,
mesmo por ofício, não chega, mesmo para o caçador de talentos nela, mulher,
confirmado. Trinta anos passam num fósforo. Até esse 17 de Julho de 2005.
Linfoma. Na base da língua. Cancro. A morte na boca antes de no papo.
“ –
Daniel, é uma rua escura. Não tem luz. Não tem janelas.”
Mas tem Ivone.
Sabe o povo, e di-lo bem, que quem se
ionesca ao mar, ivona-se em terra. Médica sempre, mas esposa para sempre,
revolve céus e lezírias em prol do pai da sua Catarina. Voltam ambos à Coimbra
do tempo primeiro em comum. Vão ao IPO, onde o(s) acolhe(m) o doutor Arnaldo
Guimarães e respectiva equipa.
Há oito anos que a tal “rua” voltou a ter
“janelas”.
Digo eu, sem errar muito talvez, que
janelas são o lapso espácio-temporal por que transitam o dentro e o fora.
É neste ponto que o Carlos, levando como
todos os dias o almoço à mãe (aos 64 anos, ainda tem mãe, o danado, o
felizardo), me sopra uma manchete que o Tempo me torna impublicável: sussurra-me
ele que, há coisa de valentes anos, esteve vai-não-vem para trazer o Ionesco
para o Guimarães, mas que a coisa só se não concretizou porque os vitorianos
preferiram o zairense N’Dinga, que não era romeno nem jamais constou que, como
Carlos, fosse gajo para morrer primeiro, ou para, restabelecida a igualdade no
marcador, não ser, para sempre, o primeiro a viver.
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