Apotegma com morte
de mãe
Há coisa de três anos, na freguesia de A., um rapaz já
descriado matou a mãe, cortou-a aos bocados e guardou os despojos na arca
frigorífica. Talvez a ideia fosse i-la repartindo por ermos pinhais e aterros
limítrofes, às doses e às meias-doses, em sacos plásticos devidamente
hermetizados. Ó cenagosa trama! Ó camiliano enredo! À terrível hora primeva do
crime sucederam-se noites brancas e dias negros – que é o que sempre aliás
acontece na vida, mate-se ou não a mãe e almoce a gente ou não.
A vizinhos e conterrâneos, quando por eles inquirido do
paradeiro da senhora, o matricida enviesava a resposta, deixando suspeitar à
descúnfia que o mais certo era a malcomportada ter fugido para parte incerta
com algum homem incerto também.
Nos entrementes, conseguintes & doravantes, o
desnaturado continuava a frequentar na sede do concelho uma daquelas
licenciaturas instantâneas de electricista que dão o 12.º mais 300 euros/mês e
papéis já preenchidos para o mestrado do rendimento mínimo e para o doutoramento
do desemprego. Até que.
Até que alguém da terrinha, ardendo mais do agudo querer
saber do que do grave intuito justiceiro, alertou a polícia, que, munida de
alvará de devassa e de mandato de espreita, lá deu com os bocados maternais que
restavam ainda na cave, onde a arca zanzurrava de indiferente, inclemente e
eléctrica mansidão.
A defesa calhou ao meu mui querido amigo João M.,
causídico de bom-nome na praça a quem, por sorte ou escassez dela, o ofício
estende muita vez a passadeira encarnada do sangue rural. O doutor João M.
tentou a inimputabilidade do cliente, resultante, a seu técnico ver, do
evidente avarianço do arguido ao nível da corneta. O colectivo não foi porém na
fita, condenando-o a um cúmulo penal de uns tantos anos, dos quais,
naturalmente, se verá livre daqui a uns poucos.
O miolo da crónica não está, todavia, nem no desenlace
dito, nem no crime maldito (ó cenagosa!, ó camiliana! etc.). Está numa conversa
sussurrada entre o advogado que defendia e um colega que, adjuvando-o, o ouvia.
Falavam eles da progressiva dessocialização e da voraz penúria existencial e
financeira que foram tomando inapelável conta do menino-de-sua-mãe. Ainda em
liberdade, restaurando-se de restos víveres, a água tinha-lhe já sido cortada e
a luz ou também já ou estava para sê-lo. Neste ponto, o colega do meu amigo
saiu-se com esta assim:
“Pá, estou mesmo a
vê-lo à porta dizendo ao fiscal da EDP: – ‘O senhor por favor não me corte a
luz, que a minha mãe fica pior do que estragada.’”
Claro: o meu amigo João teve de fugir do salão de juízo
para expectorar no átrio estrepitosas gargalhadas de caçadeira. Quando, na
semana passada, me contou ele este burlesco apotegma, eu soube de imediato que
tinha a crónica feita. Ou quase feita. Quase – porque me faltava só aquela
qualquer-coisinha chamada moralidade. Já não falta. Já cá mora. Já cá canta.
Nós fazemos todos de mãe.
O País faz de arca.
Mas o vilão da história não é o matricida.
É o fiscal.
É o fiscal porque, mesmo não chamado por ninguém, nos não
larga nem a campainha, nem a vontade de nos estragar tudo.
Almoce a gente ou não, filho.
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