11/10/2012

Rosário Breve n.º 278 - in O RIBATEJO de 11 de Outubro de 2012



Apotegma com morte de mãe

Há coisa de três anos, na freguesia de A., um rapaz já descriado matou a mãe, cortou-a aos bocados e guardou os despojos na arca frigorífica. Talvez a ideia fosse i-la repartindo por ermos pinhais e aterros limítrofes, às doses e às meias-doses, em sacos plásticos devidamente hermetizados. Ó cenagosa trama! Ó camiliano enredo! À terrível hora primeva do crime sucederam-se noites brancas e dias negros – que é o que sempre aliás acontece na vida, mate-se ou não a mãe e almoce a gente ou não.
A vizinhos e conterrâneos, quando por eles inquirido do paradeiro da senhora, o matricida enviesava a resposta, deixando suspeitar à descúnfia que o mais certo era a malcomportada ter fugido para parte incerta com algum homem incerto também.
Nos entrementes, conseguintes & doravantes, o desnaturado continuava a frequentar na sede do concelho uma daquelas licenciaturas instantâneas de electricista que dão o 12.º mais 300 euros/mês e papéis já preenchidos para o mestrado do rendimento mínimo e para o doutoramento do desemprego. Até que.
Até que alguém da terrinha, ardendo mais do agudo querer saber do que do grave intuito justiceiro, alertou a polícia, que, munida de alvará de devassa e de mandato de espreita, lá deu com os bocados maternais que restavam ainda na cave, onde a arca zanzurrava de indiferente, inclemente e eléctrica mansidão.
A defesa calhou ao meu mui querido amigo João M., causídico de bom-nome na praça a quem, por sorte ou escassez dela, o ofício estende muita vez a passadeira encarnada do sangue rural. O doutor João M. tentou a inimputabilidade do cliente, resultante, a seu técnico ver, do evidente avarianço do arguido ao nível da corneta. O colectivo não foi porém na fita, condenando-o a um cúmulo penal de uns tantos anos, dos quais, naturalmente, se verá livre daqui a uns poucos.
O miolo da crónica não está, todavia, nem no desenlace dito, nem no crime maldito (ó cenagosa!, ó camiliana! etc.). Está numa conversa sussurrada entre o advogado que defendia e um colega que, adjuvando-o, o ouvia. Falavam eles da progressiva dessocialização e da voraz penúria existencial e financeira que foram tomando inapelável conta do menino-de-sua-mãe. Ainda em liberdade, restaurando-se de restos víveres, a água tinha-lhe já sido cortada e a luz ou também já ou estava para sê-lo. Neste ponto, o colega do meu amigo saiu-se com esta assim:
“Pá, estou mesmo a vê-lo à porta dizendo ao fiscal da EDP: – ‘O senhor por favor não me corte a luz, que a minha mãe fica pior do que estragada.’”
Claro: o meu amigo João teve de fugir do salão de juízo para expectorar no átrio estrepitosas gargalhadas de caçadeira. Quando, na semana passada, me contou ele este burlesco apotegma, eu soube de imediato que tinha a crónica feita. Ou quase feita. Quase – porque me faltava só aquela qualquer-coisinha chamada moralidade. Já não falta. Já cá mora. Já cá canta.
Nós fazemos todos de mãe.
O País faz de arca.
Mas o vilão da história não é o matricida.
É o fiscal.
É o fiscal porque, mesmo não chamado por ninguém, nos não larga nem a campainha, nem a vontade de nos estragar tudo.
Almoce a gente ou não, filho.

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Canzoada Assaltante