I – Pombal, entardenoitecer de 23 de Abril de 2009
II – Pombal, entardenoitecer de 7 de Abril de 2009
III e IV – Souto, Casa, fim da manhã de 25 de Abril de 2009
I
O dia chega sempre um dia
de ter passado o tempo
de o homem ser filho do homem
de ter chegado o tempo
de o homem ser pai de si mesmo
pai de suas consequências sem alibi
pai dos dias seus filhos
de suas filhas as noites pai.
Alguns homens escalam as montanhas de deus
alguns fretam barcos transparentes no mar seco
alguns bebem mais tal que o cu seja o rosto
alguns reconhecem no cão vadio o filho do homem.
Para não morrer ainda o homem tem de viver já
o homem tem de obrigar a memória a ser futura
o homem não pode ser um condomínio de fantasmas
o homem é seu filho é seu pai é só.
A catástrofe social é sempre individual
a esperança é que é colectiva é que é dos filhos
cada homem é pai da sociedade que não perfilha
a não ser no dia que um dia chega a tempo.
O cão vadio está liberto de deus não da fome
como os dias se não liberam das noites um dia
as leis são legíveis cada homem as escreve a sós
as leis aí estão como barcos secos no mar transparente.
Então sabe o homem que a tristeza é a mãe do homem
que a mãe é para sempre noite e dia
que a mãe é para sempre quem estava antes
à espera do dia em que o filho fosse pai
dela.
II
A graça pode também vir da pessoa que ao lado fuma
uma pessoa em graça tomada pelo que chove
ao lado.
A pessoa ao lado é também uma nave de tempo, também.
É de suaves mortos cumprimentados à passagem
vivos também
mais quando chove e ao lado alguém escreve ou respira.
E ao lado alguém é uma neve do tempo também.
III
O tempo é todo terrivelmente agora
das fontes da cabeça mana a água corredora
as mãos são ainda as pontes preênseis do coração e da cabeça
só que o estômago e as tripas e os olhos exigem coisas.
Hei-de ser alguma vez o homem que pela primeira vez
visita a eternitarde portuguesa das oliveiras?
Amarei ainda alguma vez mais o caminhar do que o caminho?
Trocarei ainda todos os algarismos destas contas feitas de cor
pela inumerável vida?
Que morto me não importará ser se houver de facto vivido.
Vivido terrivelmente e agora.
IV
Era a manhã acabando na própria luz quando a vi.
Contemporânea fluidez da mecânica que não perdoa.
Crescemos para homens para mulheres para gente
e não crescemos para mais altos que a terra sermos
mas da altura dela dentro
húmus reorganizador de caracóis cacos de tijolo
humildes lixos domésticos
brinquedos partidos por quebradas infâncias.
Era a manhã acabando na própria luz quando a vi.
Era esta manhã
tinha chovido um pouco não demasiado uma pouca de água
ouvi longe o rio de carros levando gente crescida
para o matadouro das maternidades
das fábricas
das pontes que unem o nenhures próprio ao nada alheio
das casas de alterne envernizadas a sémen represo.
E agora a manhã é terrivelmente agora que foi.
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