E. B.
Esta semana, a melancolia recordou-me um caso ocorrido em Coimbra há quase uma década.
Num bairro social antigo de outras décadas mais, uma mulher de rosto de pergaminho amanhecia emoldurada pela janela da casa térrea que era a dela. Parecia-me sempre um pássaro madrugador mas nocturno, aquela senhora de outro tempo. Parecia-me também que pertencia menos à terra do que, digamos, ao céu. Era velha, mas não o digo por isso. Digo-o porque era uma espécie de criança lunar: uma epifania: o bebé feito por dois alguéns do século XIX.
Uma tarde, perguntei na vizinhança. Disseram-me que era uma vergonha o que ali se passava, o que lhe faziam e aconteciam. Vergonha porquê, quis eu saber. Porque a velhota estava demente, que passava frio e fome, que um sobrinho lhe ficava com a reforma toda, que era quase nada, a troco de uma chávena de lavagem de café, duas fatias de pão e duas malgas de sopa por dia. E que há anos a mantinha fechada em casa, a mesma em que eu a via anoitecer a manhã, a mesma onde o gajo guardava as grades e as mercadorias do café-mercearia que explorava no bairro.
Telefonei logo a um canal de televisão e à polícia. Veio tudo, agentes perplexos com a ortografia do relatório, câmara-homem e jornalista. No mesmo dia a levaram para um lar de gente que anoitecia a horas certas.
Antes do telefonema, porém, falei com ela. Disse-me que estava à espera do pai. Que era pastora. Que gostava de andar pelos montes (prédios e prédios e prédios) com as ovelhas (carros e carros e carros). E sorriu-me.
O nome de família dela era Barros. O nome próprio permitiu-me deslindar a impressão primeira que dela me ficara quanto a menos pertencer a esta terra do que a outra dimensão mais alta: era uma menina-pastora, chamava-se Estrela.
Esta semana, a melancolia recordou-me um caso ocorrido em Coimbra há quase uma década.
Num bairro social antigo de outras décadas mais, uma mulher de rosto de pergaminho amanhecia emoldurada pela janela da casa térrea que era a dela. Parecia-me sempre um pássaro madrugador mas nocturno, aquela senhora de outro tempo. Parecia-me também que pertencia menos à terra do que, digamos, ao céu. Era velha, mas não o digo por isso. Digo-o porque era uma espécie de criança lunar: uma epifania: o bebé feito por dois alguéns do século XIX.
Uma tarde, perguntei na vizinhança. Disseram-me que era uma vergonha o que ali se passava, o que lhe faziam e aconteciam. Vergonha porquê, quis eu saber. Porque a velhota estava demente, que passava frio e fome, que um sobrinho lhe ficava com a reforma toda, que era quase nada, a troco de uma chávena de lavagem de café, duas fatias de pão e duas malgas de sopa por dia. E que há anos a mantinha fechada em casa, a mesma em que eu a via anoitecer a manhã, a mesma onde o gajo guardava as grades e as mercadorias do café-mercearia que explorava no bairro.
Telefonei logo a um canal de televisão e à polícia. Veio tudo, agentes perplexos com a ortografia do relatório, câmara-homem e jornalista. No mesmo dia a levaram para um lar de gente que anoitecia a horas certas.
Antes do telefonema, porém, falei com ela. Disse-me que estava à espera do pai. Que era pastora. Que gostava de andar pelos montes (prédios e prédios e prédios) com as ovelhas (carros e carros e carros). E sorriu-me.
O nome de família dela era Barros. O nome próprio permitiu-me deslindar a impressão primeira que dela me ficara quanto a menos pertencer a esta terra do que a outra dimensão mais alta: era uma menina-pastora, chamava-se Estrela.
4 comentários:
Tu tens em ti, por dentro, a melhor pessoa que há. Por fora, escreve-la.
Daniel Abrunheiro? O Daniel Abrunheiro que dava aulas no CENJOR em 1997?
Se sim, saravá de uma aluna ocasional!
:-)
Oui, c'est moi. Merci.
Ena pá, três comentários.
Enviar um comentário