Souto, Casa, manhã de 1 de Abril de 2009
Pego devagar na minha vida
falo-lhe na cara
olho-a nos olhos
sei ter-lhe feito duas filhas suaves
percebo alguma coisa de música
tenho cinco mulheres
uma delas é minha Mãe
está doente e velha a minha Mãe
mas não faz mal porque vive
ainda me não fez aquela desfeita
um homem só de quatro mulheres é pobríssimo
e eu tenho horror à pobreza
porque sempre fui rico
bastou-me nascer
de um homem que amou uma mulher que o amava
estas coisas acontecem
um pouco por todo o lado mulheres e homens amam-se
depois ouve-se música
é abril
faz sol
à sombra está fresco
tenho um dia destes de voltar a Coimbra
ver os lilases
ver o rio
tem de ser nesta vida
que outra não haverá
estou hoje muito feliz
tenho o desespero aos pés como um cão fiel
pego devagar na minha amargura
acho-a bonita
sou agora finalmente um homem
demorei anos a matar o rapaz
o pueril rapaz dos versos e dos bailes sozinhos
percebo alguma coisa de datas
tenho uma data de datas na cabeça
nenhuma é do futuro
sei que horas são
às vezes dá-me para ler
outras não
outras fico parado
outras fico devagar
um homem é uma árvore capaz de mudar de quintal
é bom que assim seja
cidades e aldeias mudam na cabeça como paisagens de comboio
o mar ressoa no coração como um alaúde de sal
quando preciso de ver o mar leio Raul Brandão
e a dor passa
não tenho visto as minhas filhas
porque não há Raul Brandão para isso
gosto de quando o café parece um olho preto luzidio
gosto da língua portuguesa ser a única língua do mundo
era a língua do meu Pai
o meu cão amarelo percebia o que lhe dizia
vamos ao monte?
queres comer?
precisas de água?
estas coisas que os pais dizem aos filhos
podem e devem ser ditas aos cães
não vejo por que não
sim
quero ir ao monte
já comi
preciso de água
e
minha vida
preciso de ti.
4 comentários:
gsoto muito.
gosto mesmo.
gosto muito e explica-me muito também.
é teu, é belo.
Vou voltar a ler-te.
Se quiseres passa na Casa.
A Casa visitarei, merci.
belo! mas não ouses matar o rapaz. tu já me disseste quando é que se é homem. é só uma vez, e acontece só pela primeira e pela última vez. por isso, não ouses matar o rapaz.
gostei muito, daniel. também pego devagar na vida. sempre que me levanto da cama, peço à vida que não esteja a ver-me, para me dar mais um dia, e voltar no dia seguinte. assim, timidamente... e pronto, era isto. boa tarde e um beijo.
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