Souto, Casa, tarde de 26 de Abril de 2009
Ela teve o filho de manhã, precisou de beber muita água depois, pensou que precisava de beber até a ideia de água, fazer-se preencher de um riacho de montanha, partilhar as glândulas com os fragmentos minerais que vêm na água.
Trouxeram-lhes flores, botinhas de lã, tiraram-lhes fotografias, o filho era vermelho quando tossia e quando chorava – e de uma brancura inacreditável quando dormia cheio de leite, forrado de flanelas, sujeito já às esferas pensativas da música dentro, a música da água e do leite.
Ela dormitava na luz como um postal dinamarquês, o sol enroupava o vento e o vento mudava a janela de sítio com a ajuda periférica do olhar dela, que a febre elevava a desenhos secretos no estuque do tecto.
Uma tarde levaram-nos, o filho ia acomodado nas flanelas, ela reaprendendo a andar, primeiro até ao elevador, depois ao carro, depois pelos quatro degraus da entrada da casa.
A casa era parecida com a recordação da casa, mas as noites não. O corpo ao lado, na cama, era de arestas duras, irreconhecíveis e desconhecidas. Havia muito mais amabilidade no homem, mas não era o mesmo homem.
O filho subiu nos anos rápidos – e os anos eram rápidos por fora do tempo estancado dentro, o tempo da água montanhosa, o tempo da febre desenhadora de figuras secretas. Fora do filho, ela percebeu que um riacho nunca é todo, que é sempre mais do que pode beber-se dele, medir-se entre o princípio instável, algures numa fenda da pedra, em cima e longe, e a morte viva no mar – e que o mar não pode ser bebido nem contado. E isto não era enlouquecer, era ser, apenas ser, na febre como na sede, na cama solitária rente a um corpo de homem amável e duro e desconhecido.
Pela cidade, os rostos apareciam-lhe como moedas. Pareciam-se todos com pequenos espelhos ardentes pregados pela nuca a uma galeria movediça de arcadas, onde trapos vermelhos escorriam ar sem espectadores.
Viu-se grávida de novo, foi a funerais e a inaugurações de pintura, esteve no Algarve adorando a indiferença africana do azul cor-de-ouro da costa. Numa praceta, sentiu a presença de qualquer coisa que teria sido árvore antes de banco – e subiu ao banco em vez de sentar-se nele. Olharam-na de outro lado da vida, o marido desceu-a, fez-lhe uma festa na cabeça, disse-lhe Calma. E então ela foi voltada do avesso como uma recordação, e eu não conto mais esta história, este estuque.
12 comentários:
mas devias; esta história não devia ter acabado aqui. estava a gostar tanto, como já há muito não gostava de uma história!
Um amigo me encomendou seu blog, muito bom!!
Terminei eu a história, dentro de mim. E gostei.
Eu acho que é um início de romance belíssimo. Que extraordinária primeira página. Isto não devia ficar por aqui...
olha lá, acabas isto ou não?
e logo isto que...
Mas o que é isto, ó Abrunheiro! Escreves ou não escreves?!
Vicias o pessoal e depois dás ao slide!
Já nos deves uma mão cheia de poemas nossos de cada dia e meia dúzia de crónicas a verrinar o pagode.
Rapaziada: tenho andado ocupadito noutras coisas. O Estuque fica mesmo assim. Mas ameaço voltar, claro. Merci.
"dás ao slide"? "dás ao slide"?! Ainda há quem diga "dás ao slide"? Julguei que quem o fazia já tivesse "dado ao slide". Bélhos. Soindes uns bélhos.
Ocupado noutras coisas? Que outras coisas? Atão mas agora a minha vida é isto? Vida? Quotidianos pessoais? Agendas próprias? Vidas? Mas que palhaçada vem a ser esta? A que horas fecha isto? Quem é que apalpou o cu à minha filha? Qual sôdotôr? Quem é que manda aqui, afinal, hã? Mas quéstamer...? O meu 'nheiro? Onde? Quem? Hã? Over. Roger. Clearance. Shcuto.
eu bem sabia que ias voltar.
eu jà estou em Paris outra vez...
adorei, é como a àgua, tem de ser, é tao bom!
bjos, hoje, rosas.
LM
ocupadito, ocupadito... olha, tamãe eu!
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