02/12/2007

Odes (Barato)

Ontem à noitinha, última de Novembro, deu-me para escrever quatro odes antes de ir para a rádio trabalhar. Saíram estas. Chamei-lhes Odes (Barato) por ter achado piada ao trocadilhozito, aliás reles. Era para lhes ter chamado Vê Lá se te Odes. Tudo por causa da III delas, que é brutinha e tem asneiras e tudo. Enfim, um divertimento.


*****

Odes (Barato)


I. Ode Tida

Já tive dias, versos tenho só já.
Flores de azulejo – nenhum jardim.
Fosforeflores brilham de noite para mim:
aves de estuque que no céu do quarto há.

Pequenas rimas, cesuras brancas:
de inverno exílios sossegados.
Voltas ao frio, vendo prados,
olhand’ ovelhas tristes e mancas.

A mesma noite sulco ainda:
em frasco d’éter conservado,
eu lagartixo os muros do passado
e tapo a feia fenda com a linda.

Tud’ é assim tão triste? Não, não é:
eu sofro alegrias pequeninas,
como ter das merceeiras esquinas
o cheiro a sabão e a café.

Ou o florão de cal da onda fria,
da cal do Baleal, que é azul:
o mesmo Raul Brandão ’inda a diria
mais bela lusa praia, norte a sul.

Uns brancos pés de clara mulher alheia,
crianças revoando matinais.
Estrelas e caracóis em espirais
do ADNiverso a mesma ideia.

A pureza distraída de nossas filhas.
Uma folha pela chão escrita de cor
pelo suave Outono escritor
capaz de mil quadras, mil sextilhas.

Melanco’ólico às sextas-feiras,
meus versos cada dia epifanias:
são as minhas mais sóbrias bebedeiras,
que já só versos tenho, tive dias.

II. Ode Aeronáutica

Já o sol contempla só o avião que alto
dele sol ardendo passa como espada de anjo:
à terra tomou a névoa, a humana e a outra,
a de caídas nuvens como anjos sem espada.

Como o meu amigo Joaquim diria, é tudo muito
belo – muito triste tudo diria, e digo, eu.
Rimam tristeza e beleza – assim a Língua nos
convoca percepção, entendimento e resignação.

Pássaro algum, porém, é sem pés e só asas:
assim, humanos e pedestres em nevoento baixio,
ao céu de aviões os olhos ergamos, nem que
apenas pela espada de ouro, se não pelo voo.

III. Ode Moteleira

Motéis albergam tipos cavaleiros
de rocinantes fêmeas dulcineias:
casados contra outras, cavalheiros;
casadas ou não elas, boas ou feias.

(Guarita recepciona multibanco.)

Pára-se um pouco à frente por cautela.
Mete-se o el contado pela janela,
que o cartão é revistado por ela,
a esposa, amanhã cedo no banco.

Aos quartos separam tabiques finos,
dois gajos se avistou entrando ao mesmo:
não correm risco, eles, de meninos,
torrões contra torrões só dão torresmo.

Esta é enfermeira quarentona
e quem com ela chega, sessentão.
Dois milagres se espera: um da cona,
outro que ela cause em tesão.

Ist’é tudo por causa da TV,
qu’exibe desamores americanos.
Que não sejam amores, mas guanos,
importexporta pouco, já se vê.

Vem mais um casalinho-internet,
ficam os filhos em casa à consola.
Ela tem dois; ele um – e quem os mete
à frente de um livro para a escola?

Pelas três da manhã, tosse o gasóleo:
acabados amores não começados
aos lares retornam, já trocado o óleo.
Isto nota-se mais sextas e sábados.

IV. Od’ um Dia

Um dia
talvez hoje
não pedirei o sal da tua boca.

Por localidades avulsas
circunscrevo cães pobres e pobres homens:
ao futuro me habituo

sem ti já.



Caramulo, entardenoitecer e noite de 30 de Novembro de 2007

1 comentário:

Daniel Abrunheiro disse...

Manuel da Mata has left a new comment on your post "Odes (Barato)":

A ode III às duas anteriores prefiro. É bela a valer.
E cá me fico, meditando na moça de Toboso.

Canzoada Assaltante