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Para Aquecer
Uma das modernices que ainda não chegaram aqui à vila é o Aquecimento Global. Aqui está frio. Manhã muito cedo, ajudo os vizinhos a descongelar os cães por esses pátios. Os pastores fazem fogueiras pela serra para que as ovelhas articulem passinhos de boneco a pilhas. Antes que seja tarde, faz-se noite. Juntamos os ossos ao balcão da Gracinda, empinamos umas cachaças anti-oxidantes e entorpecemos na contemplação das ancas soporíferas da Gracinda, cujo marido está no Brasil há catorze anos a telefonar que já vem.
Cai a noite, queima-se lenha. As casitas parecem velas trémulas pelo presépio espúrio da encosta. Nas trevas, os corvos zunem como cabos de alta-tensão. Estilhaça-se a Lua em fragmentos de vidro, cai em neve. Rangem as árvores como móveis de gavetas cheias de pássaros hibernautas. Como a noite é sempre a mesma, nunca mais há-de ser natal – nem novo o ano.
Por causa dos telejornais, trocámos os carros por comida enlatada. Quando as conservas se nos acabaram, trocámos as televisões por mais sardinhas e mais cavalas e mais sangacho de atum. À cautela, vamos por esses chãos quebrando míscaros com uma barra de ferro que outrora ramo de árvore foi. Comemo-los temperados de urze e geada à roda das fogueiras locomotoras de ovelhas.
O artesanato local é à base de gatos, que o frio glacial torna estatuetas vivas por dentro e rijas por fora. Os nossos filhos foram estudar para Águeda e fizeram como o marido da Gracinda. Se calhar, já somos avós e não sabemos: até porque, sem televisão, não temos acesso aos programas da manhã, que vivem à custa de velhinhos comovidos.
Pode ser que, um dia, os dias voltem. Já não digo os nossos filhos, cujo destino é partir: à vida e ao nosso coração. Já não digo o marido da Gracinda, que se calhar é feliz na favela. Mas digo que pode ser que volte o movimento perpétuo dos cães e das ovelhas, entre cinzas de fogueiras tornadas obsoletas pela feliz chegada do Aquecimento Global finalmente Local.
Uma das modernices que ainda não chegaram aqui à vila é o Aquecimento Global. Aqui está frio. Manhã muito cedo, ajudo os vizinhos a descongelar os cães por esses pátios. Os pastores fazem fogueiras pela serra para que as ovelhas articulem passinhos de boneco a pilhas. Antes que seja tarde, faz-se noite. Juntamos os ossos ao balcão da Gracinda, empinamos umas cachaças anti-oxidantes e entorpecemos na contemplação das ancas soporíferas da Gracinda, cujo marido está no Brasil há catorze anos a telefonar que já vem.
Cai a noite, queima-se lenha. As casitas parecem velas trémulas pelo presépio espúrio da encosta. Nas trevas, os corvos zunem como cabos de alta-tensão. Estilhaça-se a Lua em fragmentos de vidro, cai em neve. Rangem as árvores como móveis de gavetas cheias de pássaros hibernautas. Como a noite é sempre a mesma, nunca mais há-de ser natal – nem novo o ano.
Por causa dos telejornais, trocámos os carros por comida enlatada. Quando as conservas se nos acabaram, trocámos as televisões por mais sardinhas e mais cavalas e mais sangacho de atum. À cautela, vamos por esses chãos quebrando míscaros com uma barra de ferro que outrora ramo de árvore foi. Comemo-los temperados de urze e geada à roda das fogueiras locomotoras de ovelhas.
O artesanato local é à base de gatos, que o frio glacial torna estatuetas vivas por dentro e rijas por fora. Os nossos filhos foram estudar para Águeda e fizeram como o marido da Gracinda. Se calhar, já somos avós e não sabemos: até porque, sem televisão, não temos acesso aos programas da manhã, que vivem à custa de velhinhos comovidos.
Pode ser que, um dia, os dias voltem. Já não digo os nossos filhos, cujo destino é partir: à vida e ao nosso coração. Já não digo o marido da Gracinda, que se calhar é feliz na favela. Mas digo que pode ser que volte o movimento perpétuo dos cães e das ovelhas, entre cinzas de fogueiras tornadas obsoletas pela feliz chegada do Aquecimento Global finalmente Local.
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Carta ao Menino sem Pai
Pai Natal, tu dantes chamavas-te Menino Jesus e não eras um velho de barbas brancas com ademanes de administrador anual de uma central aeroviária de renas. Não te vestias de vermelho-coca-cola. Eras um Menino maiúsculo, não um passador de bandas largas.
O Menino era um dos frutos mais dourados e adorados de Dezembro. Tu não. Tu começas logo em Outubro a espreitar das lojas para fora, assediando a molécula consumidora do cristão e o átomo cristão do consumidor. Não te vais embora nem nos desamparas a loja até que Fevereiro te bata a bota. Suporto mal o teu sotaque americano de invasor de países e de lares. Deve ser por te pareceres tanto com um atleta do “wrestling”. Cheiras a hambúrguer de celofane que tresandas. E a tua obesidade não provém da bonomia, mas da maionese. Perdoar-me-ás a frontalidade, mas é que para mim não quero nada. De ti, quero eu dizer.
Se ainda te chamasses Menino Jesus, e deveras O fosses, talvez quisesse. Para mim, para a região, para o País e para o Mundo.
Falta-me o número 117 da Colecção Vampiro, por exemplo. Isso e um fim-de-semana no Alaska com a Shania Twain. Não sei se é pedir muito. O mais certo é que seja. Se não puder ser nem o Vampiro nem a Shania, traz-me ao menos um par de botas-de-elástico, que os anos me vêm tornando numa espécie de conservador de seminário que não chama freiras às pipocas.
Para a região e para o País de onde te escrevo, ó meu Menino, peço-te coisas tão mais pragmáticas quão menos simbólicas. Que os rios não amanheçam alcatifados de peixes mortos. Que a água das torneiras não fumegue de arsénio. Que os donos das fábricas não as façam falir à pressa para que a miséria seja mais lenta ainda. Que a música pimba passe a estar prevista no Código de Processo Penal. Que o jornalismo sirva para algo e não alguém. Que o bacalhau não venha pré-demolhado. E que o novo “acordo” ortográfico não seja tão crioulo como e quanto ameaça.
Quanto ao Mundo, enfim, ó nosso Menino, faz com que não seja criança. Nem infantil, nem global. É diverso, o Universo. Não deixes que seja só vice-versa. A única arma de destruição “maciça” (eles querem dizer “massiva”, mas não sabem) é a relação dólar/barril de crude. Eu sei que tudo se resolverá, de vez, quando os pólos se derreterem. Mas não é coisa boa, isso.
Não é isso coisa boa porque, acabado o gelo e derretida a neve, não terei Alaska nenhum para dois dias natalícios com a Shania Twain. Com ela ou, sem ela, com a leitura do número 117 da Colecção Vampiro, ó meu Menino sem pai.
Pai Natal, tu dantes chamavas-te Menino Jesus e não eras um velho de barbas brancas com ademanes de administrador anual de uma central aeroviária de renas. Não te vestias de vermelho-coca-cola. Eras um Menino maiúsculo, não um passador de bandas largas.
O Menino era um dos frutos mais dourados e adorados de Dezembro. Tu não. Tu começas logo em Outubro a espreitar das lojas para fora, assediando a molécula consumidora do cristão e o átomo cristão do consumidor. Não te vais embora nem nos desamparas a loja até que Fevereiro te bata a bota. Suporto mal o teu sotaque americano de invasor de países e de lares. Deve ser por te pareceres tanto com um atleta do “wrestling”. Cheiras a hambúrguer de celofane que tresandas. E a tua obesidade não provém da bonomia, mas da maionese. Perdoar-me-ás a frontalidade, mas é que para mim não quero nada. De ti, quero eu dizer.
Se ainda te chamasses Menino Jesus, e deveras O fosses, talvez quisesse. Para mim, para a região, para o País e para o Mundo.
Falta-me o número 117 da Colecção Vampiro, por exemplo. Isso e um fim-de-semana no Alaska com a Shania Twain. Não sei se é pedir muito. O mais certo é que seja. Se não puder ser nem o Vampiro nem a Shania, traz-me ao menos um par de botas-de-elástico, que os anos me vêm tornando numa espécie de conservador de seminário que não chama freiras às pipocas.
Para a região e para o País de onde te escrevo, ó meu Menino, peço-te coisas tão mais pragmáticas quão menos simbólicas. Que os rios não amanheçam alcatifados de peixes mortos. Que a água das torneiras não fumegue de arsénio. Que os donos das fábricas não as façam falir à pressa para que a miséria seja mais lenta ainda. Que a música pimba passe a estar prevista no Código de Processo Penal. Que o jornalismo sirva para algo e não alguém. Que o bacalhau não venha pré-demolhado. E que o novo “acordo” ortográfico não seja tão crioulo como e quanto ameaça.
Quanto ao Mundo, enfim, ó nosso Menino, faz com que não seja criança. Nem infantil, nem global. É diverso, o Universo. Não deixes que seja só vice-versa. A única arma de destruição “maciça” (eles querem dizer “massiva”, mas não sabem) é a relação dólar/barril de crude. Eu sei que tudo se resolverá, de vez, quando os pólos se derreterem. Mas não é coisa boa, isso.
Não é isso coisa boa porque, acabado o gelo e derretida a neve, não terei Alaska nenhum para dois dias natalícios com a Shania Twain. Com ela ou, sem ela, com a leitura do número 117 da Colecção Vampiro, ó meu Menino sem pai.
2 comentários:
Daniel,
Só não te acompanho na ida ao Alaska, apesar da companhia que escolheste me agradar. Quanto ao resto, rezo contigo.
Cedendo à convenção:FELIZ NATAL!
Um abraço,
Manuel
Caro Daniel,
Investiguei muito para tentar descobrir o 117 da "Vampiro"...mas fica já prometida a minha prenda deste Natal... Em centenas de "Vampiros", na Livrarte, não havia! Mas vou à procura...fica descansado!
Nestas Festas...aquele abraço! No 2008, muitos e bons textos!
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