A Noite em Breve
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)
******
14
Caramulo, entardenoitecer de 25 de Agosto de 2007
A tarde foi sem sol à vista. Impediu-no-lo uma massa de pintura em cinza de fogueira fria: o anil cedeu ao cartão em pinceladas largas, numa superfície lisa aqui e ali mais densa. Trabalhei pouquíssimo. Depois de almoço, a gata deitou-se-me nas pernas e adormeceu como uma princesa presa da doçura fatigada do baile. Deixei-me estar também, nestoutro sofá de vinte e cinco anos depois: não chove, não tenho cães nem casinhoto de madeira.
Temperei a carne para o jantar, deixei-a no frio, o homem veio comigo para que o deixasse viver em linhas que não mudam nem escrevem o mundo, mas que os lêem: ao mundo e ao homem. Esta noite passa um filme dos Irmãos Marx na televisão. Responderei “presente” à convocatória desses formosos loucos. Enquanto não, entrevejo um jogo de futebol na pastelaria, através de uma galeria de cinco sentados. Ao intervalo, levantam-se, pagam as cervejas, vão-se embora, ficamos eu e este homem nos meus ombros como um pássaro absorto.
Neste momento, por todo o mundo, homens e mulheres escrevem linhas. Desfecham códigos novos, na prática intransmissíveis. Comentam a vida e a morte e a praia e a árvore e a rua e a mulher e o homem e a memória e a vida. Pendem sobre essas nucas a espada do Sol e a espada da Lua, cujos fios reverberam ouro e prata, manhã e amanhã, noite e dia. A solidão tem muitos filhos. É uma água muito pura, provinda de glaciares onomásticos, territoriais, indevassáveis.
A uma janela alta, recordo, olhando longe, aos pés, uma praça de seis árvores, uma papelaria escolar, uma tasca de bifanas, uma loja de electrodomésticos e um vão esconso de advogado alcoólico. Repeti-me nesta posição tantas vezes, que não tenho data para indicar. Todos os meses de todos os anos, suponho, estive a uma janela alta, recordando prospectivamente o que via na praia de seis árvores etc. Maciços de nuvens rolaram pelo céu breve. Nas minhas costas, pelo corredor de ligação do piso alto, o rumor da mesinha de rodas com termos de café, leite e chá, pacotes transparentes com bolachas, saquetas de açúcar (6/8 gr.), cubos de guardanapos de papel, colheres brancas de plástico. Nas minhas costas, os gabinetes numerados, uma etiqueta sob o número denunciando os clínicos de serviço. Pelo intercomunicador, roufenhava o chamamento dos condenados à tristeza. Velhos, crianças e gajos como eu: gajos-já-em-crianças-velhos. Em baixo, no largo das árvores, o desfile silencioso dos outros. O papel-de-parede imitava uma floresta outonal. Cheirava a clorofórmio e a psicologia. Mais importantes do que os doutores, só as enfermeiras. A administrativa aborrecia-se ao computador, ligada pelo messenger a ninguém, entremeando o tetris com a aceitação de consultas. As luzes neonizavam toda a esperança. Eu, de costas. Pelas dez da manhã, peões ingressavam já no tasco de bifanas para um copo de branco. Devo ter estado muitas vezes de costas, não mais. Devo ter descido, entrado na bifanaria e pedido um branco, anos antes ou depois. Atrás da praça, a ferrovia. Se não me atirei à linha, foi por ter-me atirado às linhas.
Noutros natais, caminhei na noite. Era sob as iluminações festivas. As cores enfraqueciam. Só alguma chuva as vivificava, a troco da poalha estrelada na íris. Fechava o coração no casaco, abria-o quando conseguia um lugar individual nalgum comedor. Ficava até depois do último cliente, o patrão da casa sentava-se-me ao pé, conversávamos até serem horas, de quê horas não sei. Voltava às ruas, caminhava. O Jesus municipal de serviço dobrava no carrilhão do convento. Ia até ao extremo norte da povoação, matriculava-me na horda de desavindos ao balcão do bar da estação de serviço. O carro da polícia vinha de vez em quando, nunca quando era preciso. Havia de tudo: um poeta, uns ciganos, umas cachopas que aceitavam uma-bebida-depois-mais-uma-já-agora, vendedores cansados e murchos como flores de varanda, viajantes que paravam para um café e uns minutos imunes ao hipnotismo dos traços descontínuos, alguns músicos sem contrato. Vezes houve em que entrei para o banco de trás do carro de um semiconhecido, era levado para a desalegria solidária dos bares de alterne, quem tinha dinheiro subia aos quartos do primeiro andar com alguma nativa de Goiás ou de Odessa. Eu ficava em baixo a ouvir Roberto Carlos. De vez em quando, escrevo uma canção para cantor nenhum.
Pela alba, as alternadeiras desentristeciam, recebiam as percentagens e iam comer sopa e bifanas no pão ao bar da estação de serviço, a que recolhíamos com elas. Os natais, colados a cuspo uns aos outros, passaram todos. Fui primaverar para outros lados idênticos, antes da montanha que me permite não apenas a noite em breve como algumas coruscações (deléveis, portuguesas) no imo de sombras.
Caramulo, entardenoitecer de 25 de Agosto de 2007
A tarde foi sem sol à vista. Impediu-no-lo uma massa de pintura em cinza de fogueira fria: o anil cedeu ao cartão em pinceladas largas, numa superfície lisa aqui e ali mais densa. Trabalhei pouquíssimo. Depois de almoço, a gata deitou-se-me nas pernas e adormeceu como uma princesa presa da doçura fatigada do baile. Deixei-me estar também, nestoutro sofá de vinte e cinco anos depois: não chove, não tenho cães nem casinhoto de madeira.
Temperei a carne para o jantar, deixei-a no frio, o homem veio comigo para que o deixasse viver em linhas que não mudam nem escrevem o mundo, mas que os lêem: ao mundo e ao homem. Esta noite passa um filme dos Irmãos Marx na televisão. Responderei “presente” à convocatória desses formosos loucos. Enquanto não, entrevejo um jogo de futebol na pastelaria, através de uma galeria de cinco sentados. Ao intervalo, levantam-se, pagam as cervejas, vão-se embora, ficamos eu e este homem nos meus ombros como um pássaro absorto.
Neste momento, por todo o mundo, homens e mulheres escrevem linhas. Desfecham códigos novos, na prática intransmissíveis. Comentam a vida e a morte e a praia e a árvore e a rua e a mulher e o homem e a memória e a vida. Pendem sobre essas nucas a espada do Sol e a espada da Lua, cujos fios reverberam ouro e prata, manhã e amanhã, noite e dia. A solidão tem muitos filhos. É uma água muito pura, provinda de glaciares onomásticos, territoriais, indevassáveis.
A uma janela alta, recordo, olhando longe, aos pés, uma praça de seis árvores, uma papelaria escolar, uma tasca de bifanas, uma loja de electrodomésticos e um vão esconso de advogado alcoólico. Repeti-me nesta posição tantas vezes, que não tenho data para indicar. Todos os meses de todos os anos, suponho, estive a uma janela alta, recordando prospectivamente o que via na praia de seis árvores etc. Maciços de nuvens rolaram pelo céu breve. Nas minhas costas, pelo corredor de ligação do piso alto, o rumor da mesinha de rodas com termos de café, leite e chá, pacotes transparentes com bolachas, saquetas de açúcar (6/8 gr.), cubos de guardanapos de papel, colheres brancas de plástico. Nas minhas costas, os gabinetes numerados, uma etiqueta sob o número denunciando os clínicos de serviço. Pelo intercomunicador, roufenhava o chamamento dos condenados à tristeza. Velhos, crianças e gajos como eu: gajos-já-em-crianças-velhos. Em baixo, no largo das árvores, o desfile silencioso dos outros. O papel-de-parede imitava uma floresta outonal. Cheirava a clorofórmio e a psicologia. Mais importantes do que os doutores, só as enfermeiras. A administrativa aborrecia-se ao computador, ligada pelo messenger a ninguém, entremeando o tetris com a aceitação de consultas. As luzes neonizavam toda a esperança. Eu, de costas. Pelas dez da manhã, peões ingressavam já no tasco de bifanas para um copo de branco. Devo ter estado muitas vezes de costas, não mais. Devo ter descido, entrado na bifanaria e pedido um branco, anos antes ou depois. Atrás da praça, a ferrovia. Se não me atirei à linha, foi por ter-me atirado às linhas.
Noutros natais, caminhei na noite. Era sob as iluminações festivas. As cores enfraqueciam. Só alguma chuva as vivificava, a troco da poalha estrelada na íris. Fechava o coração no casaco, abria-o quando conseguia um lugar individual nalgum comedor. Ficava até depois do último cliente, o patrão da casa sentava-se-me ao pé, conversávamos até serem horas, de quê horas não sei. Voltava às ruas, caminhava. O Jesus municipal de serviço dobrava no carrilhão do convento. Ia até ao extremo norte da povoação, matriculava-me na horda de desavindos ao balcão do bar da estação de serviço. O carro da polícia vinha de vez em quando, nunca quando era preciso. Havia de tudo: um poeta, uns ciganos, umas cachopas que aceitavam uma-bebida-depois-mais-uma-já-agora, vendedores cansados e murchos como flores de varanda, viajantes que paravam para um café e uns minutos imunes ao hipnotismo dos traços descontínuos, alguns músicos sem contrato. Vezes houve em que entrei para o banco de trás do carro de um semiconhecido, era levado para a desalegria solidária dos bares de alterne, quem tinha dinheiro subia aos quartos do primeiro andar com alguma nativa de Goiás ou de Odessa. Eu ficava em baixo a ouvir Roberto Carlos. De vez em quando, escrevo uma canção para cantor nenhum.
Pela alba, as alternadeiras desentristeciam, recebiam as percentagens e iam comer sopa e bifanas no pão ao bar da estação de serviço, a que recolhíamos com elas. Os natais, colados a cuspo uns aos outros, passaram todos. Fui primaverar para outros lados idênticos, antes da montanha que me permite não apenas a noite em breve como algumas coruscações (deléveis, portuguesas) no imo de sombras.
******
Texto: Caramulo, entardenoitecer de 25 de Agosto de 2007
Foto: Caramulo, noite de 5 de Dezembro de 2007
1 comentário:
(re)publicado na incomunidade
Enviar um comentário