Sobraram textos.
Junto-os aqui para o esquecimento sossegado do costume.
I
OS IMPÉRIOS DISSOLUTOS – MANIFESTO CONTRA O COLONIALISMO
Uma pessoa veste-se em minutos.
Demora anos a despir-se.
São os impérios dissolutos:
vem vice-rei, vai rei a vir-se.
Caramulo, noite de 16 de Outubro de 2006
II
“DO SONO LÚCIDO NÃO”
“Do sono lúcido não despertes as crianças”
– assim era o primeiro verso qu’ escrevia,
quando entrou o homem brancanémico
que gosta de bolos e, interpelando-m’ele,
se foi às malvas a maresia lírica.
Assim se perde um poema e s’ omem ganha.
Poem’ aqui e outr’ ali. Não tantos
os poemas quantos os homens, a anemia,
os bolos. Na sossega salamandra, o rubro
lume forjava ferro a meus ossos
incandescentes, às rimas atento como às gentes.
Caramulo, tarde de 19 de Outubro de 2006
III
SAFO DA BIOPSIA
Verdaquosa natura m’envolve,
su’ a frio o ping’ arvoredo.
Biopsia já fiz e não tive medo:
o q’ a morte não faz, a vida resolve.
Sabendo de ti vou eu mais o’ menos,
viv’ eu dias longos e outros pequenos.
À beira da terra, à beira do mar,
serviço de copa p’rà sala-de-estar.
A que portugueses farei eu, enfim,
relatóri’ ofertório ou poem’ afim?
Da língua soltei grainha de baba:
biopsia já fiz, vid’ à mort’ acaba.
Viagem Caramulo-Seia, tarde de 19 de Outubro de 2006
IV
MANUEL FARDINHA E AUGUSTA RENDILHEIRA – EVOCAÇÃO DE
Ninguém que eu conheça explica muito bem
a ausência de meu tio Manel Fardinha
e de minha tia Augusta Rendilheira,
mulher dele,
ele homem dela.
São desaparições, isso eu sei.
Deles – e dos dias deles.
Quando muito chovia ou batia
o sol no largo do fontanário,
por Cristo, com Cristo, em Cristo,
oliveira do Calvário.
Das raparigas de então ardiam
as febras virgens, a vaginal aranha,
as cheias boiavam de laranjas
e afogadas ovelhas,
isso eu lembro.
Perto, a menos de 40 metros, uma tia
chamava-se Saudade.
Chamou Rosa à filha.
De modo que me estavam.
por assim dizer,
escritos de antemão os versos,
dada a família.
Mas – e de Manel?
Mas – e de Augusta?
A família faz,
desfaz,
diz,
não diz.
Seia, tarde de 19 de Outubro de 2006
V
LX MAIS I E Ó
Para Cesário Verde, natural e inevitavelmente
Recolhe a noite seu lixo humano.Pensões recolhem meretrizes.
Homens que não sigam directrizes
acabam sendo lix’ ou guano.
Tristes lampejam candeeiros.
O Rossio é farto d’ indirecções.
Por vezes, basta, aos mais useiros,
Ter telemóveis, indicações.
O que não conta, cont’ aqui eu.
Estive em Lisboa vai p’ra dez anos.
Directriz tive, merd’ ela e eu.
Voltei p’ra casa, p’ra meus guanos.
Seia, noite de 19 de Outubro de 2006
VI
CERTO
Nenhuma nova poesia há-de ser nova.
Novo há-de ser o homem que, velho embora,
tente, ainda assim,
repeti-la.
Caramulo, noite de 29 de Outubro de 2006
VII
SUECADA ANGLODINAMARQUESA
Não a poesia apenas.
Não apenas o ex-rei Lear ao frio.
Não o desespero nobiliarca apenas.
Mas repetir o outro saber.
A cultura geral, o que te permite
falar com,
por exemplo,
um sueco.
Mais dois manos.
E um baralho.
Caramulo, noite de 29 de Outubro de 2006
VIII
FINITA
Cheirit’ a leite da púberpele.
Buço rucito ourand’ a boca.
Mamita leve, pingo-de-mel.
Citrina beiça, ‘xp’riência pouca.
Pé nu nunc’ ai l’ o vi ai eu.
A mão já vinh’ envolt’ em luva.
Blus’ amarela e camafeu.
Ai eu q’ o dig’ expost’ à chuva.
Séc’lo passado, 84.
Maio cedeu, se deu doçura.
Er’ uma ‘spécie de teatro,
er’ uma ‘spécie de ternura.
Calças eu brancas, el’ amarelas,
sapatos curtos, juventude.
Adeus, Natália. Adeus, saúde!
Gostei de ti sem mais aquelas.
Caramulo, noite de 30 de Outubro de 2006
IX
MOMENTETERNAS – SEXTILHAS E TERCETOS PARA ALGUMA SALVAÇÃO
1
Esta manhã a água não correu das torneiras.
Lavei-me à chuva que se despenhava em jorro no quintal.
A gata não exigiu a mijada exterior.
Enrolou-se nos destroços da cama vazia.
Enxuguei-me com uma toalha pesada.
Fiz café forte e fumei-o.
Parece que um homem rasgou um cano com a máquina.
Foi esta a informação da autarquia.
Problema talvez resolvido p’lo fim do dia.
2
Quatro mulheres conversam rápidas, sentadas.
São fabris e febris.
Peles sem creme e cabelos sem verniz.
Ganga barata enchouriça-lhes as pernas.
Alianças-frieiras friccionadas por detergente de louça.
Devoradoras de legumes, filhos, toucinho.
Homem resmunga contra o tabaco no ar.
Bebeu um quartilho de água mineral.
Está velho para diversões.
3
Pêlos brancos da barba caiam-me a lâmina.
Água da chuva numa bacia.
Barba decepada a frio: after-chuva.
Quatro homens entalam palavras entre eles.
Calafetam de massa a sobrevivência.
Deixam crescer as sobrancelhas como arbustos.
Encouram as mãos encla-avinhadas no vidro.
Pergaminham a cara sob o chapéu.
Deixo que vivam sem água.
Caramulo, tarde de 6 de Novembro de 2006
X
DIAGONAIS
Para o meu mui querido amigo e poeta Joaquim Jorge Carvalho
Há muito que ver – o mesmo infinito mais.Vem do uso dos olhos a diferença.
Pássaros são folhas diagonais,
Muito mais do que se pensa.
Repito na panela sopas antigas.
Inverno é verbo meu preferido,
que ajo com letras de cantigas
(e até já tomei banho vestido).
Já fiz coisas que não queria
ver pelas filhas repartidas.
Voltas, nunca venderia.
A vender, vend’ria idas.
Idas para o meu futuro
brev’ igual, pastelarias.
Leite mole e pão do duro,
queijo de barra às fatias.
E uma volta p’las freguesias.
O sol do céu, tantos baldios.
É um país de chuvas frias.
É um país de amores frios.
Ó minha terra, ond’ eu morri:
quanta lembrança saúda por ti.
Ai ai ai, ai ai ai:
terra de tio, d’ irmão e de pai.
Amas até o piolhoso
país que rege o regicida.
Ultimatum oitocentoso.
Quem não entrou, só tem saída.
Caramulo, manhã de 14 de Novembro de 2006