07/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 816 a 818

© DA.

816

Quarta-feira,
3 de Novembro de 2021

    Vi hoje uma cadelita de olhos muito puros. Não são muitas as pessoas de meu conhecimento cujo olhar equivalha em pureza aos da cadelita que me olhou. Talvez os dedos de uma mão bastem a contá-las. Já não sei. Sei pouco de umas poucas coisas. Gosto muito de aprender – mas não sei muito por aí além.
    Escrevo este bilhete no fito de guardar os olhitos dela. Talvez os sonhe uma destas noites. Não é impossível. Tenho sonhado coisas que, não valendo tusto ou pataco, mais valera não me fazerem entrepiscar os neurónios aturdidos pela ínvia relojoaria do sono.
    Também quero seja constante deste bilhete o frio urdido pelo entardenoitecer. Vim ver o meu Irmão. O Lar fica em uma promontório serrano, é aqui afiada a cutelaria eólica. Mais isto: dei ração-seca a seis gatos que ao pátio da instituição se acolhem. É um momento feliz. E mais puro, ele também, por mais raro.

817

Quinta-feira,
4 de Novembro de 2021

Vozes rumorosas neste canto do bairro.
Vozes por vãos & desvãos de escadas & prédios.
A Encarnação tem cancro, anda amarela como os autocarros.
Coitada da Encarnação, talvez lhe não chegue o Natal.
Tem ido muito à farmácia, como a Meca os sarracenos.
É o entretém dela, coitada, vai dando corda à esperança.
A esperança é a última a morrer, não a Encarnação.
Falam da Encarnação em surdina, já a esquecem.
O bairro sem Encarnação será como com ela é.
Esta evidência só dói a quem mais não tem que fazer.

Certa gargalhada bem grasnada soa do segundo-andar.
É o prédio pintado a rosa pingue-deslavada.
São mulheres-da-limpeza, riem-se à bandeirada.
Antes rir, Encarnação, pois então, do que chorar.
Outras mulheres de outras limpezas aqui não moram.
As que bebem riso, depois mamam do que choram.
À boca do entardenoitecer, há geral sossega.
O nascimento não volta, ’inda a morte não chega.
Somos de vozeados pensamentos silenciosos:
e seguimos as modas, somos pundonorosos.

Por vezes choca, é chocante a autoridade da idade.
Anunciação, de 86, treme até frios que não há.
Saco pré-cadavérico de si mesma, é órfã de filhos.
Mora no rés-de-chão – felizmente, escadas nenhumas.
É no prédio azul-pingão de cal nenhuma.
Roçam-se em bolor as garagens húmidas.
Já mais que cinco vezes as devassaram ciganos.
(Mas isto não pode vozear-se, é “racismo”.)
(A melhor maneira de não se ser racista é deixar-se roubar.)
(Digo a verdade curial como um justo, bebedor embora.)

Ser bem-formado não obriga a diploma escolar.
Ser bem-formado é do chàzinho em casa, casa havendo.
Este é um bairro que algum chá formou em crianças.
São estas hoje senis exemplos de boa-formação.
Rumoram como moram: em surdina anónima.
(Anónima até chegar o escriba que as nomeia.)
A Encarnação-Cancerígena é de mansas gentilezas.
Alimenta gatos, quase é vadia quanto eles.
Mas a carta do IPO é de impreterível glioblastoma.
E eu leio tal carta às escuras, que susto é nascer.

(...)

818

Sexta-feira,
5 de Novembro de 2021

    Saindo, acabei dando passeio à senhora-da-asneira. A estação dos CTT a que me dirigi, achei-a intransitável. Fila de velhos tipo ténia (a bicha, não os velhos) – saí mal entrei. Resolvo para a semana o que não resolvi hoje. Não há mal.
    A hora é de sol franco. O arvoredo apetece. Tem o ar certa qualidade de cal. Ao umbroso abrigo de tílias ainda fartas, não desfolhadas ainda pela época, seis aposentados gozam a paz do recanto. Disto deles uns cem metros, fumando como um buda tóxico. Faço, por assim dizer, contratempo – enquanto ao doméstico recato não retorno, não me parece insensato fruir esta luz no geral portuguesa & no particular coimbrã. Não avizinho nem se me avizinha gente da estirpe-gentalha. No bornal (cujo fecho se irremediou em estragação), porto Ruy Belo & Jacques Prévert: não estou portanto só mas tão-só a sós. Vim de camisola de malha cinzenta. Tem berlindes de borboto que me distraio a catar. Segundo o espirituoso dichote, é de pura-lã-virgem por correr mais do que o pastor a ovelha que a deu. Sim, não é mau o bocado. Macio, o lápis alinhava sem esforço o registo.
    Passa um fulano de expressão escarninho-mesquinha. Vai só, mas decerto ruminando alguma ideia ácida. Terá quarentas, não mais. Na retaguarda, a uns dez metros, vêm quatro mulheres encorpadas como os pegões das pontes. Uma estoira de cabeleira oxigenada, de um amarelo-palha-açafrão. Outra é de unhas gelatinadas. A terceira (agora que passou) transporta um cu às camadas freáticas como os acordeões & as gargalhadas escaqueiradas. A quarta é bonita, não se pinta nem se fez tatuar.
    Procedo a este & afins registos sem metafísica nem ilusão. Estou vivo entre vivos, movo-me entre movimentos, exerço uma acção sensitiva sobre as essências & as aparências do mundo. Há dois dias, anotei certo olhar de certa cadelita. Calha-me hoje um cão famélico. É de olhos tremendos, também ele – mas, neste, doem-me seus tiques de medo, sua evidência de batido & desprezado. Preto, de farripas creme. Já não é moço. Macérrimo, espera a improvável esmola que não tenho para dar-lhe. Preferiria não o haver visto.
    Já arrefece. Palmilhei uma meia-légua em outro sentido (outro qualquer sentido como é de conformidade a quem diversamente interpreta o mesmo trecho). Vão dar-se as cinco (17h00m), anoitece agora mais cedo, é fruta da época. A caminho destoutro alhures, aconteceu-me ver um rapaz que há bons quarenta anos não via. Está velhíssimo. Tinham-me dito (no ano passado) que estava preso por causa de umas trafulhices quaisquer. Há quatro décadas, era um louraço de que as raparigas gostavam. Tinha paleio – e até motorizada. Está acabadote, coitado, este robert-redford da zona Relvinha/Brinca/Loreto. As duas visões (cão & ex-recluso) entristuraram-me. Pode ser que entretanto se me dissipe a predisposição macambúzia.
    Revi uma vivenda azul no caminho das quatro horas.
    Vivalma lhe não vi, sob o céu ainda de todos.
    Uma idosa de sapatilhas-adidas veio ao euromilhões.
    A década bate carta por carta nos marcos de pedra.
    Tanto dá como não dá dar & não-dar.
    Na incansável (mas tão cansativa) pantalha televisiva, anões da politiqueirice grunhem boas-fés de pacotilha. A senhora do segundo-andar cria sardinheiras na varanda. São bonitos pontos encarnados em perspectiva crepuscular. (Aquele cão amargurou-me.)



2 comentários:

cid simoes disse...

Obrigado!

Daniel Abrunheiro disse...

Sou eu quem agradece, Cid.
Aproveitei para corrigir gralhas ocultas. Está feito.
DA

Canzoada Assaltante