16.
RUI, (JÁ) AGORA
QUE (JÁ) VIVESTE
Coimbra, domingo,
16 de Fevereiro de 2020 (I)
Coimbra,
quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2020 (II-XI)
In memoriam viva de
Rui Daniel Leite dos Santos Abrunheiro
(29 de Dezembro de
1951 – 12 ou 13 de Fevereiro de 2020)
NOTÍCIA PREAMBULAR
O meu Irmão Rui morreu
em Fevereiro passado, não sei se a 12 ou 13.
Sei muito pouco. Não
foi do vírus que por aí grassa e desgraça o mundo. Foi de outra coisa. Morreu de
ter nascido, enfim. Extinguiu-se em solidão. Sozinho deram com ele em casa, algures
nesse bastardo paraíso-na-terra chamado Estados Unidos da América, para onde há
muitos anos partiu em demanda do que não havia.
Partilho convosco algumas
(pouquíssimas) das linhas que escrevi nos dias que se seguiram ao conhecimento dessa
má-nova, dessa má-hora. Não as mostro todas porque dor & pudor se me mesclam fulminantemente.
É o segundo Irmão (de)
que (me) perco.
Resta-me continuar criando
linhas, em vez de galinhas.
Até que.
I
Depois
do nosso senhor Pai,
Depois
da senhora nossa Mãe,
És
o terceiro a re-ver (*) o Jorge.
Pois
muito bem:
Já
nem todos faltamos.
Aqui
pela terrinha cá vamos desandando os que sobram.
Não
é a mesma coisa sem ti, concordarás decerto.
Ando
sobre aqueles sapatos que me deste.
(Gastaram-se-me
em Peniche as botas que herdei do Jorge.)
Resta-me
dizer-te certas recordações estilhaçadas.
Aquela
vez em que me levaste pela mão ao circo pobríssimo,
Ali
entre a Fernão de Magalhães e a da Figueira da Foz,
Sabes,
naquele baldio feito estacionamento à-lagardère.
Aquele
relógio que me trouxeste da gare de Bordéus,
As
horas brilhavam no escuro – como tu agora também.
O
senhor Pai co-concebeu-te em nervosa agonia
Nos
primícios idos da década de 50/XX.
Nasceste
ruço, bonito, vulnerável, tremendo:
E
canhoto como o destino dos pobres.
A
arte do insulto deve-te uma estátua.
Ao
contrário de ti
(Mas
só por enquanto)
Eu
sobrevivo & sobrebebo.
I do it my
way,
Como
o Sinatra dess’Amér(d)ica para onde foste des-nascer.
O
coração é mais gástrico do que manda a lei, Mano:
Pulsas-me
no estômago qual calhau engolido em ácido.
Morrer-nos
irmão é nunca mais ser plácido.
Ou
aquela vez em que almoçámos no Pena Branca, Buarcos.
Só
nós os dois para sempre, como agora-hoje.
(...)
Fico-me
sozinho guardando margens:
Do
Mondego como da Vala do Norte.
Do
Bolão à Figueira, é capital a Pedrulha.
Ninguém
ficou, Rui, em casa:
Nem
a própria Casa.
Escrevo
isto a um domingo, o primeiro domingo sem ti.
Como
agora já sabes, é sempre domingo na eternidade.
A
taberna do senhor Dias está fechada – e o sr. Dias também:
Como
parece que também tu agora etc.
Amanhã
é segunda-feira para os vivos, não para este poema.
Que
(des)farão aí nas Américas de teu corpo, não sei.
Espero
que o respeitem: é obra do senhor Pai & da senhora Mãe.
Por
aqui, parece que nem a mármore chegas.
Escrevo
por isso isto sob o teu retrato afinal bonito,
Bonito
homem-rapaz triste como os cães à chuva.
Canhoto
como os bilhetes do cine-teatro,
Avesso
à moderação, extremista do coração.
Benfiquista
mais até do que o senhor Eusébio
Que
por aí finalmente em ex-pessoa encontras:
E
meu Irmão atormentado de nascer sem porquê.
(...)
Escultor
forte de teu pétreo silêncio mesmo,
Garagem-casa
erigiste em frente aos Velhos,
Comemos
todos lume para nos borrarmos cinza todos,
Deixaste
de fumar há tantos anos,
Deixaste
de beber há tantos anos,
E
agora o cancro na mesma, o Caranguejo
Que
tão a católicos come quão a protestantes,
Rio-me
todo de lágrimas que não choro,
Um
homem é um homem – e eu valho velho cão,
Tu
és agora a chuva, eu faço desse cão, olha:
A
sorte rarefaz-se como os autocarros ao domingo,
Vim
a pé ’té aqui, hoje é O Horácio, dantes era O Rio,
Servem
cálices de sombra a fregueses em trevas,
Conto
nada, nada me perguntem, haja moedas,
Ontem
com a minha Leonor subo em música.
É
triste ser domingo tantos anos tantos dias seguidos,
A
eternidade custa preços sem poupança,
Eu
ando nos inseguros desenganos,
A
gente come-&-caga-a-puta-dança,
É
triste estar tão vivo sobre chão-d’irmãos.
(...)
E
onde está o fechamento, a porta obscura?
Rui,
onde ora estás, qual é a lei?
O
que vivi? O que não sei?
Onde
é nascer? O que é procura?
Por
que desesperar por quem nos não espera?
O
outro amor, aquele que era
Etc.
(*) Ou reaver
(*) Ou reaver
II
Uma
pessoa é um homem, um homem é um cão,
O
cão é o lobo do homem, o homem era Irmão.
Fecha-se-nos,
pior do que porta, a janela,
O
futuro era afinal pretérito & imperfeito,
Custa
ver que Pai & Mãe percam (pereçam) filhos até na morte.
Firo
quanto refiro, parece, na vaga luzitrémula noite nova,
Quinta-feira
penúltima deste Fevereiro mortífero,
Pretendo
tão-só, por ti, um uno único verso aurífero,
Linha
arda em lenha que afinal somos,
Cinzas
prometidas & cumpridas na pedra do ex-Lar.
O
homem é o homem, as bestas são as bestas,
Sempre
assim foi, nunca mais assim não será,
És
agora mais velho do que todos os vivos,
Contemporâneo
de D. Afonso Henriques,
Pena
amarga é seres pó de cinzeiro entre USAmericanos.
(...)
Já
o outro dizia cada-nenhum-é-como-cada-qual.
(...)
Parece,
por outro lado, cientificamente comprovado
Não
ser a morte o fim da vida, só o da existência,
Ora
porra, digo eu à ciência, ora tenham lá paciência.
Onde
doravante Rui eu procurara, o não encontrara,
Ah
pois não, assim tal-qual em mais-que-(im)perfeito,
Dois
irmãos para-o-galheiro, empobreço à cão pluvial,
Hoje
tive moedas & saí logo que pude,
Então
graças a Vó’-Senhorias, felicidad&saúde!
Fomos
ambos ao circo pobríssimo que afinal somos todos,
Foi
em 1970 ou quê, Rui, aquela explosão no Café Sofia?
A
senhora mexicana morta sob o trolley-bus,
O
estouro surdo do corpo dela sob o rodado,
Pegaste-me
ao colo para que me não cortassem os vidros.
O
relógio noctiluminescente de Bordéus me trouxeste,
Reconheci-te
na rua como o meu cão a mim
–
E no mesmo sítio da rua, o cão recorda,
O
cão sou: o elefante guardador de cemitérios
O
mais sérios aliás, meu mano ruço menino rapaz.
(...)
Agora
que tudo és ao nada a que voltaste,
Filho
de ninguém, corpo-não-corpo-sem-pai-nem-mãe,
Deve-te
o sono ser mineral, cabal, mansinho,
A
ti, q’ao avesso de mim, pouco usaste de vinho.
Diz-me
mas é dos Pais - & do Jorge, se puderes:
Aqui,
no entretanto, envelhecem mulheres.
Não
há bailes senão daqueles geriátricos,
Velhos
estéreis de pesadelos pediátricos,
(...)
III
Mas
& se agora em prosa, ó minha rosa?
2 comentários:
Viva, Daniel
Tenho irmãos como tu tens, com a sorte de ser o mais velho e assim o primeiro na fila dos bilhetes, se tudo correr bem como desejo e preciso.
Só para dizer que te entendo e que te vou lendo por aqui todos os dias.
Um abraço
Ass: o gajo que parece o Jorge Ramos e afinal não é, Hans Castorp de brincadeira tua e cuja mulhera festeja aniversário no mesmo 8 de maio que tu.
Grande João:
nem imaginas o bem que me fez (ainda está a fazer) o teu comentário. Sorrio gratamente.
Abraço para ti. E saúde para ti e todos os teus.
DA
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