© Christian Boltanski
22.
DE SEXTA A SEGUNDA
Coimbra, de 27 a 30
de Março de 2020
(Da
China veio o vírus que por aí, mundo-todo, vai matando à fartazana. Milhões em
prisão-domiciliária. Entretanto:)
Elegância
doce de uma senhora improvável – dizem-me que fisicamente morta há uns quantos
anos. Conheceu muito sede a neve, teve trenó. A honradez, conheceu-a cedo
também. Mulher rara, deixou obra menos melancólica do que forte. Leu, desenhou,
procurou & encontrou. Ouviu muita música, sobretudo fora da sua pátria. De
mui pouca gente pôde ser afim. Duvido que o haja lamentado. Conheceu um homem.
Ficou com ele até que a hora expediu, dele, o passaporte final. E pronto – é
hoje um parágrafo sem reticências.
Vejo
vivos às janelas. Vejo o campo largo, indiferente à humana desorientação. Áreas
de cultivo sem um antropóide à vista. O amplo céu faz – como (desde) sempre –
de mar suspenso. Nascer é já de si pandemia. Como (desde) sempre – e a cada
dia.
Já
do Sábado-Derradeiro-do-Março a Luz se faz Toda. Da marquise, espreito a
quietude. É muito cedo. O Mundo, parece, r-existe. Morrem uns quantos, dizem
que mundos, perdão, muitos. Morre tudo de haver nascido. Uma pessoa não é
perguntada, responde-lhe a morte.
A
senhora da televisão diz: “Cem mortos em
Portugal.” Mais: “5.170 infectados.”
Fora
de toda a humana contingência, aves povoam a luz finimatinal do Sábado. O mundo
é real’ternativa. Em casa, música & vozes escritas. Alberto Pimenta. Luiz
Pacheco. Luís Filipe Costa. E o Raul Brandão das Memórias.
Cá
estamos: finitos, rodeados de infinito. Nada que esperar. Pouco por que – ou
ante que – desesperar.
Faz
hoje 79 anos que se suicidou Virginia Woolf (28 de Março de 1941).
Morrem
muitos em Espanha, Itália, anda tudo em desandamento pandémico. Vou lendo as
horas. Julgo, decerto com acerto, que a Mãe-Natura se vinga do bicho-humano.
Sujámo-La – ela “limpa-nos”.
Durante
esta espécie de interlúdio que vem de nenhures para ir a lado algum, o recurso
é a livralhada. Ela felizmente abunda, generosa & fértil, sáfara é que
nunca-jamais-em-tempo-algum. Produz-se uma cafeteirada, torra-se algum pão, há
margarina – e há Camilos (Pessanha & Castelo Branco), Antónios (Nobre &
Osório), Manuéis (Maria Barbosa du Bocage & Vásquez Montalbán), Júlios
(César Machado & Cortázar). Tudo escasseando, nada afinal falta.
Por
muitos lados, muitos silêncios. As televisões rejubilam, ávidas de números
pânicos. Confinamento, recolhimento, estupor (no antigo sentido de espanto), absoluta evidência da
inocuidade religiosa. As máquinas funcionam. Deserta(da)s, as praias aparecem
lavadas como nunca. Nem a versos me empurra esta conventualidade. Há luz, há
água, há gás – por enquanto. E ominoso silêncio. E aqui, à mão, os livros
boníssimos.
Por
uma nota-de-rodapé num telenoticiário, fico a saber que morreu Mécia de Sena, viúva de Jorge de Sena,
aos 100 anos, em Los Angeles, California. Mais nada. Se fosse o caso de ter
morrido alguma dessas figuras pirosas da piroseira nacional, alguma caga merdeira qualquer das “novelas” ou das frivolidades ou dos
pimbas, que escarcéu por aí não se ladraria… Mas Mécia de quem? Adiante,
todavia.
[Nota-para-consumo-d(est)a-casa:
Não se trata (nem é importante) de
acreditar ou nem por isso nestas linhas. Trata-se de fazê-las, de dar-lhes
criação – de, por assim dizer, dar-lhes linhas.
São o que faço.
São quase tudo o que faço.
São quase unicamente o que faço.
São o meu duplo-sempre: desde &
para.
Isso me baste.
Isso me basta.]
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