Três
curtas-metragens
1
Baile de sábado-à-noite em associação recreativa de
lugarejo. Os casados no bufete. As casadas, em casa. Os solteiros, à caça. As
solteiras, ao alcance de tiro. Lâmpada de luz-roxa, bola-de-espelhos. Fora do
recinto, mais motorizadas do que carros. Dentro, a latência biológica, predatória,
rapace: fervor da pré-procriação.
Uma
das solteiras: olhos iridescentes, carnação (gene)rosa, frequência
universitária, um só ex-namorado no currículo.
Um
dos solteiros: belo rapagão alto, espáduas simétricas,
electricista-canalizador, cobiçadíssimo pela fauna fêmea.
O
salão-de-baile tem escadas que sobem ao balcão-beberete. Ele vai a subi-las,
agora. De baixo, ela mira-o fixamente pelas costas. Ele sente a pressão
hipnótica daqueles olhos de céu estilhaçado. Já não acaba de subir. Desce, vai
dextro a ela. A música está quase no fim – mas ele toma-a na mesma, dançam sem
prévia apresentação mútua. Depois, ele leva-a pela mão ao bufete. Cerveja para
ele, gasosa com groselha para ela. Só então se tornam Armando & Otília. E
só então se tornam um(a) do outro.
Passado
pouquíssimo tempo, têm uma filha. Oito meses antes disso, casaram-se pela
igreja. Passado pouquíssimo tempo, ele adoece da cabeça. Desorienta-se por
nada, muda-se-lhe o carácter, torna-se irascível, desfecha palavrões
descabidos, arranja problemas no trabalho, despedem-no. Ela consegue finalmente
forçá-lo aos médicos.
O
primeiro médico é um negligente arrogante, não cuida da evidente gravidade do
mal, mas o segundo doutor acerta de imediato contas com a fatalidade: tumor
cerebral maligno. É uma vez operado – resiste heroicamente, segura-se de
muletas, ainda reconhece mulher & filha. É operado segunda vez – fica
vegetativo. Dura uns meses. A respiração dele enche a casa como o vento as
florestas. O vento cessa, aquieta-se o arvoredo: ele morre.
No
lugarejo, entretanto, não houve mais quem pegasse na direcção da associação
recreativa. Nunca mais houve baile – só a luz permanece roxa, estilhaçados os
espelhos da bola como dela o olhar outrora.
2
Era de comboio que vinha pelas primícias do
entardenoitecer. O trabalho não era muito, não mais de quatro horas, ao fim das
quais comia alguma coisa numa casa-de-pasto perto da gare ferroviária. Desfazia
tempo lapijando as palavras-cruzadas do jornal do dia. Tomava o comboio de
volta à hora invariável. Se o não fizesse, só cinco horas depois teria outro.
Uma
noite, conheceu outra pessoa. A nova pessoa era mais velha uns vinte anos. Foi
ao balcão da casa-de-pasto que se conheceram. Comiam lado-a-lado nos bancos
giratórios de pé-alto. Foram revelando-se lances pretéritos de cada vida. Eram
vidas vulgares. Eram tão-só duas pessoas. Não possuíam fortuna financeira ou
predial relevante. Trabalhavam, colhiam o salário, gastavam-no em comida, luz,
água, gás, licor, sabão & sapatos.
A
pessoa com mais anos passou a interessar-se por palavras-cruzadas também,
começando até a adquirir & a partilhar publicações da especialidade com a
pessoa menos jovem. (E talvez algumas vezes a de menos anos tenha ido no
comboio de só cinco horas depois.) Foram envelhecendo a par até as duas décadas
de diferença se esbaterem invisivelmente.
A
casa-de-pasto mudou de gerência, o novo dono era antipático, passaram a
encontrar-se na de duas portas ao lado. A pessoa que vinha & partia de comboio
arranjou trabalho na cidade de origem, deixando de entardenoitecer por ali. Cruzam
ainda palavras pelo correio – mas nunca mais se cruzaram.
3
Era uma vez um homem que se abstraía de dores
anacrónicas do foro afectivo pelo escapismo da leitura. Ele era o primeiro – e
o último – e o único – a reconhecer que o coração sentimental é uma relojoaria
atafulhada que não bate bem (d)a hora: daí que lesse tanto contra ele.
Certa
tarde de largos oiros aéreos, abeirou-se dele um indivíduo possuidor de olhos anónimos:
era uma senhora. A mulher saudou-o pelo nome próprio. Ele sentiu-se embaraçado
por se não recordar do próprio dela. Fez-se porém de não-surpreso &
ofereceu-lhe assento. Ela aceitou, continuando a falar-lhe com a maior
naturalidade tu-cá-tu-lá deste mundo.
Os
temas eram os de sempre: separações, filhos, progressão-na-carreira, escassez
de perspectivas, a aranha da idade babando a seda da última teia.
Ele
apreciou o fulgor não-pintado da cabeleira dela, a alvura coruscante da
dentição, a firmeza agressiva dos morangos peitorais pontiagudando a blusa
roxa, as mãos pequeninas de boneca crescida. Isso – mais as safiras perigosas
com que ela o olhava (e via). Ela insistiu em pagar a despesa, despedindo-se
assim:
– Felicidades,
Armando.
Ai
Otília, como se “felicidade” pudesse ter plural.
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