Quase tal mãe,
quase tal filho
Reconheci-os
sempre – e ao longo de quase cinquenta anos. Mãe & filho. Nunca soube de
homem dela nem de pai dele. A pobreza deles era tão próxima da miséria quão
esta minha unha deste dedo meu. Cheiravam: pelo próprio nariz como aos outros.
Não-utentes de balneário próprio nem público, atingiram a tez encardida e
hirsuta dos mais simiescos primatas. A mãe tinha mais barba do que eu. Ele
tinha, todavia, menos que dizer mal da vida do que eu tantas vezes digo. Só
que, sem mais nem menos – eram tão Portugueses quanto quem me fez.
Uma
coisa muito-só-dela: ela adorava casamentos. Na sé mais velha, não perdia um domingo
esponsório. Movia-a o que a comovia: a brancura pura da noiva,
flor-de-laranjeira sobre que virginalmente nevara. Não faltava a um. Arrancava
malmequeres baldios do chão municipal, rompia adentro os convidados,
ofertava-os à recém-casada. Como os vestidos de noiva não usam bolsos, nunca
recebeu moedas pela doação. Nem ela as procurava – bastou-lhe sempre o nojo
disfarçado de gratidão com que cada nubente lhe suportava o fedor de andrajosa
dada a florilégios núbeis.
Uma
coisa muito-só-dele: ele preferia funerais. Favorecia precisamente aqueles em
que era deixado penetrar & assistir: os dos menos-ricos. Entesoava-o o crepe
gázeo na carnação alvinegra das mulheres enlutadas. Os círios mortiços do
velório eram para ele bola-de-espelhos. Chorava madalenamente (crocodilamente é
que nunca) pelos manequins de cêra que todos os defuntos são. E para mais, o
adágio portuguesíssimo que obriga a que “dia
de funeral, dia de bebedeira”, ah sim, não lhe foi nunca recompensa de
somenos: embebedava-se de álacre tristeza com o recolhimento & a devoção de
um monge alquimista de licores.
Digo
agora: quase cinquenta anos de reconhecimento podem não chegar para mote a
voltas de crónica. Porém, o filho ter aparecido morto em estreme solidão
domiciliária – isso sim, deus-me-livre-de-que-não, isso serve. Aconteceu que
mãe & filho eram de um lugarejo siamês do meu. Isso era em próximo derredor
da minha (mo)Cidade. Quando a Cidade me & a eles deixou de ser moça, filho
& mãe passaram a residir num casinhoto opaco de uma só porta & uma só
janela. Era em ba(i)rro estrangeiro, por assim dizer. Dava a espelunca para um
campo de canas, grilos grandes, víboras pequenas & lixos automobilistas
muito maiores. No exterior, sobre um pano de lama endurecida, mantinham um
assador carbónico onde imolavam chicharros argênteos & sardinhas tesas de
sal ao lado de descomunais esmeraldas a que chamamos pimentos.
Uma
pouco bela manhã, vieram os de impermeável branco da Câmara. Eram da
Higiene/Desinfestação. Despejaram-nos, envenenaram os derradeiros ratos do
casebre & selaram o tugúrio a tijolo & cimento. A mãe foi assistida
socialmente. Ele, também. Ela foi posta num lar municipal. Ele, noutro. Ao que
sei, ela ainda lá está. Quanto a ele, aguentou-se algumas seis semanas no
albergue antes de fugir. Fugiu – e arranjou quarto
sem-luz-nem-água-nem-esgotos-nem-amanhã no lugarejo-natal. Comia na
sopa-dos-pobres com o retrato de Sidónio Pais ao lado do Crucifixo Redentor.
Continuou a frequentar funerais. A mãe percebeu que o abrigo não era a pior
coisa do mundo: a CMTV dava-lhe casamentos infindáveis mesmo sem ser ao
domingo.
Agora,
o cadáver do filho foi descoberto por uma prima pobre da senhoria. O defunto
não tinha cinquenta anos (sou coerente nas minhas crónicas). Estava morto
porque sim. Nenhum indício de crime. Nenhuma violência para além da de ter
nascido. Estendido qual chicharro. Sobre a brasa fria de um carvão apagado.
A
mãe não sabe. Não lhe contam nada dele. Nem ela pergunta. Toma os comprimidos
que lhe dão. Vê noivas. Nunca olha para os noivos: são homens, não lhe
interessam. Move-a & comove-a a laranjeira que neva pureza. Sonha-se uma
delas. E quer ter um filho. E eu, senhor de tantas palavras, não tenho uma que
sobre isso lhe diga.
Sem comentários:
Enviar um comentário