Crónica não formosa
mas segura
1 Lamento, Sebastião, mas não “é pelo sonho que vamos”.
Para
que fôssemos riquíssimos, Camões rapou escandalosa pobreza. A meu ver, a edição
de 18 de Janeiro do corrente deste Jornal poderia ter sido escrita pelo grande
lusíada que viu, descalça, ir Leonor para a fonte. Refiro-me em
concreto às páginas 6 e 15 da edição em papel (peças que também podem e devem ser
consultadas na edição electrónica, aqui: http://www.oribatejo.pt/).
A
incontornável senhora vice-presidente da Câmara de Santarém perpassa pela
sexta. A minha Amiga Manuela Marques também. Na décima-quinta página, o caso
remete para Salvaterra de Magos. Sim, refiro-me aos casos absolutamente
dramáticos e completamente intoleráveis dos cidadãos Carlos T., professor de
música, 62 anos, que por Santarém, e literalmente, sobrevive pelas ruas da
amargura com & como um cão; e de Henrique C., 42 anos, inutilizado por um
pinheiro caduco há mais de duas décadas, arrastando-se por chãos e degraus em
aparato desumano.
Ninguém
que tenha lido o número anterior deste Jornal pode ter ficado insensível a esta
dupla vergonha. Ou pode?
2 Somos um país minúsculo que parece incapaz de entender
o desamparo como capaz de tanta letalidade quanto o cancro, os hospitais
infecciosos, o perigo rodoviário, a gangrena dos veios-de-água e os incêndios.
E a depressão. E a solidão. A miséria não é remediável com natalinhos
calendários do tipo ó-p’ra-mim-tão-bom-cristão-uma-vez-por-ano.
A besta voraz do capitalismo selvagem, impune & libérrima, tem uma filha:
chama-se indiferença social. A fome existe. Estamos no século XXI mas a fome continua
a andar por aí. O desmantelamento social é realíssimo. O Outro não é entidade
reconhecível. O Trabalho e o Trabalhador são vistos por certos patrões como
inimigos da fortuna instantânea. Processional, a carneirada muito bale mas nada
vale. Exígua, escassa, rala, rara, a minoria de pessoas para quem Solidariedade não é palavra vã, oca ou
maninha, essa talvez ainda acredite no célebre poema do tão precocemente
malogrado Sebastião da Gama que antigamente dourava os manuais escolares. Pode
ser que essas pessoas ainda acreditem ser pelo
sonho que vamos – mas eu não.
3 Deixei há muitos anos de resistir ao cinismo
existencial. Revolucionámos cravos – mas arrastamos ferraduras. O meu
agnosticismo incréu em matéria religiosa propagou-se ao descrédito, muito meu, quanto
a esse animal sem remédio chamado ser
humano. E disto ninguém me tira. Reservo-me o direito a esta negatividade.
Não nasci anteontem, desconheço se morro depois de amanhã. (Já agora, quero
chamar-Vos a atenção para a crónica de Mário Rui Silvestre, também na passada
edição do nosso/Vosso O Ribatejo.
Intitula-se “O Tejo a quem o polui” e
é uma belíssima peça, de uma prosa desassombrada. Revela-nos e releva-nos a
insignificância até cósmica da nossa eterna efemeridade. Foi uma das pérolas da
minha semana. Recomendo-vo-la totalmente.)
4 Esta minha crónica é toda amarga, sei-o bem. Santarém,
Salvaterra, Portugal – terra(s) que ninguém salva de si mesma(s). Aqui onde
nasci e vivo, há muitos Carlos e Henriques também. Habitam os intervalos da
chuva, invisíveis ao mundo. Ando a ficar parecido com eles: são cães bípedes,
destroços oblíquos de naufrágios individuais que é muito lindo fotografar para
a lagrimeta de quando há eleições. Já o grande riomaiorense Ruy Belo, com
lapidar concisão, no-lo dissera: “O meu
país é o que o mar não quer”.
Quero
eu, para mal dos meus pecados, ó Sebastião. Ó Manuela. Ó Inês.