25/01/2018

CRÓNICA NÃO FORMOSA MAS SEGURA - Rosário Breve n.º 539 in O RIBATEJO de 25 de Janeiro de 2018 - www.oribatejo.pt




Crónica não formosa mas segura

1 Lamento, Sebastião, mas não “é pelo sonho que vamos”.
Para que fôssemos riquíssimos, Camões rapou escandalosa pobreza. A meu ver, a edição de 18 de Janeiro do corrente deste Jornal poderia ter sido escrita pelo grande lusíada que viu, descalça, ir Leonor para a fonte. Refiro-me em concreto às páginas 6 e 15 da edição em papel (peças que também podem e devem ser consultadas na edição electrónica, aqui: http://www.oribatejo.pt/).
A incontornável senhora vice-presidente da Câmara de Santarém perpassa pela sexta. A minha Amiga Manuela Marques também. Na décima-quinta página, o caso remete para Salvaterra de Magos. Sim, refiro-me aos casos absolutamente dramáticos e completamente intoleráveis dos cidadãos Carlos T., professor de música, 62 anos, que por Santarém, e literalmente, sobrevive pelas ruas da amargura com & como um cão; e de Henrique C., 42 anos, inutilizado por um pinheiro caduco há mais de duas décadas, arrastando-se por chãos e degraus em aparato desumano.
Ninguém que tenha lido o número anterior deste Jornal pode ter ficado insensível a esta dupla vergonha. Ou pode?

2 Somos um país minúsculo que parece incapaz de entender o desamparo como capaz de tanta letalidade quanto o cancro, os hospitais infecciosos, o perigo rodoviário, a gangrena dos veios-de-água e os incêndios. E a depressão. E a solidão. A miséria não é remediável com natalinhos calendários do tipo ó-p’ra-mim-tão-bom-cristão-uma-vez-por-ano. A besta voraz do capitalismo selvagem, impune & libérrima, tem uma filha: chama-se indiferença social. A fome existe. Estamos no século XXI mas a fome continua a andar por aí. O desmantelamento social é realíssimo. O Outro não é entidade reconhecível. O Trabalho e o Trabalhador são vistos por certos patrões como inimigos da fortuna instantânea. Processional, a carneirada muito bale mas nada vale. Exígua, escassa, rala, rara, a minoria de pessoas para quem Solidariedade não é palavra vã, oca ou maninha, essa talvez ainda acredite no célebre poema do tão precocemente malogrado Sebastião da Gama que antigamente dourava os manuais escolares. Pode ser que essas pessoas ainda acreditem ser pelo sonho que vamos – mas eu não.

3 Deixei há muitos anos de resistir ao cinismo existencial. Revolucionámos cravos – mas arrastamos ferraduras. O meu agnosticismo incréu em matéria religiosa propagou-se ao descrédito, muito meu, quanto a esse animal sem remédio chamado ser humano. E disto ninguém me tira. Reservo-me o direito a esta negatividade. Não nasci anteontem, desconheço se morro depois de amanhã. (Já agora, quero chamar-Vos a atenção para a crónica de Mário Rui Silvestre, também na passada edição do nosso/Vosso O Ribatejo. Intitula-se “O Tejo a quem o polui” e é uma belíssima peça, de uma prosa desassombrada. Revela-nos e releva-nos a insignificância até cósmica da nossa eterna efemeridade. Foi uma das pérolas da minha semana. Recomendo-vo-la totalmente.)

4 Esta minha crónica é toda amarga, sei-o bem. Santarém, Salvaterra, Portugal – terra(s) que ninguém salva de si mesma(s). Aqui onde nasci e vivo, há muitos Carlos e Henriques também. Habitam os intervalos da chuva, invisíveis ao mundo. Ando a ficar parecido com eles: são cães bípedes, destroços oblíquos de naufrágios individuais que é muito lindo fotografar para a lagrimeta de quando há eleições. Já o grande riomaiorense Ruy Belo, com lapidar concisão, no-lo dissera: “O meu país é o que o mar não quer”.
Quero eu, para mal dos meus pecados, ó Sebastião. Ó Manuela. Ó Inês.

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Canzoada Assaltante