Uma valsa-história
a três tempos
Tempo-1 Pode parecer-Vos
inverosímil o que de seguida vou contar-Vos. Admito que sim – mas isto Vos
garanto: inverosímil mas verdadeiro. Aconteceu mesmo. A Vida & a Morte têm
destas coisas. Vamos, pois, a isto:
Tempo-2 A 19 de Dezembro de
2017, o meu querido Amigo & antigo companheiro de bola (três clubes, anos
diversos) José Manuel dos Santos Peres morreu. Foi a contribuição sócio-estatístico-hospitalar
de Coimbra para o rol de vítimas da legionella
dos nossos (e meus) tristes tempos. Nascera a 4 de Agosto de 1961 &
casara-se com a Paula a 5 de Agosto de 1985, consórcio amoroso de que nasceu
uma filha formosa, a Patrícia. O senhor Peres-pai fôra gravador-ourives do mais
fino quilate. (Quantos noivos lhe não devem a finura dos nomes nas recíprocas
alianças?) O filho Zé seguiu do pai-Peres fé & profissão, tornando-se
muitos anos caixeiro de ourivesaria especializado em relojoaria. (Este pormenor
dos relógios é crucial para o que sigo relatando.) Um dia, a ourivesaria que
empregava o Peres-filho fechou portas. Indemnizado por tuta & meia, o Zé
Peres viu-se no desemprego. Não desistiu. Olha quem. Tirou um curso de
vigilância-segurança e arranjou trabalho no ramo. Não era a mesma coisa – mas
dava para ajudar ao sustento da casa familiar. Até que, por meados de Novembro
passado, caiu doente à cama. Foi acidente de trabalho, dúvida nenhuma: a
bactéria mortífera entranhara-se-lhe no organismo durante o turno num dos
sítios empresariais que vigiava. Esteve um mês em coma induzido. Não lograram
todavia salvá-lo. Inocente de novo, foi a sepultar por as vésperas de Natal.
Não consta que algum dia nos retorne.
Tempo-3 Dois dias depois,
contei a súmula do exposto no Tempo-2 a um outro meu Amigo de
sempre, o Fernando Jorge Domingues Correia. Ele quis saber mais, perguntando-me
com aferida pontaria qual o dia de óbito do Zé Peres. Respondi-lhe que a 19.
Então, ele fez aquela cara que todos fazemos quando o aparentemente impossível
(e daí que inverosímil) entra sem
bater por a nossa porta adentro. Eu quis saber porquê: “ – Que cara é essa, Jorge? Conhecia-lo?” E ele disse-me que sim,
que conhecia. Disse-me que sim, que conhecia, e mostrou-me o pulso direito. No
pulso direito dele (ele é canhoto desde nascido, usa relógio do avesso desde a
4.ª Classe), latejava a encarnado um relógio de ponteiros. Não estranhei nem
cor nem avesso de sinistra, posto que benfiquistas nós ambos. Só que não era
aquele relógio vulgar o busílis-da-questão. A invulgaridade da questão era de
outro teor. Por palavras dele: “ – Ó
Daniel, eu só ando com este relógio há dois dias. O que uso há mais de vinte
anos avariou-se-me no dia 19. Sim, 19 de Dezembro de 2017. Agora, adivinha onde
o comprei. Onde o comprei – e a quem…” Eu gemi: “ – Não pode ser…” E ele: “ –
Tanto pode, que foi mesmo assim e é e há-de ser! Comprei-o ao Zé Peres e nunca
mais usei outro. Este que trago, estava esquecido na gaveta há anos.” Não
foi preciso dizermo-nos mais nada. Olhámo-nos um ao outro – e no rosto de outro
& um era, pura como a água da fonte boa, legível a evidência de, uma vez
por outra, também o Tempo se dar ao capricho de parar & de se deixar ficar
quietinho à espera de que a má-hora, como a do Zé Peres, passe e não retorne.
Sem comentários:
Enviar um comentário