05/01/2018

Ano Novo, Lusa Velha - Rosário Breve n.º 536 in O RIBATEJO de 4 de Janeiro de 2018 - www.oribatejo.pt





Ano Novo, Lusa Velha




Escrevo-Vos no dia-primo de Ano Novo sob uma campânula de cartão chamada céu(-muito-)nublado. O Sol não rompe a cerração. Há uma latência pré-pluvial nos corações agabardinados. Há, há.
Defronte, onde há mais de quatro décadas era o bairro-de-lata da Ervinha, moram as habitações ditas sociais dos antigos pobres da zona. É a esta padaria-pastelaria que os ditos vêm. Estão na mesma: pobres & antigos (crianças incluídas).
Há quarenta & tal anos, isto não era padaria nem pastelaria: era um Café atabernado, servidor (sem modem) de uma magnífica cerveja-à-pressão & de solo fofo e ruidoso, pois que atapetado de cascas de tremoços & amendoins, para além da serradura pejada de beatas mal apagadas & de escarros estrelados como ovos frescos sobre chão de mosaicos que até lembrava a Abadia de Westminster.
Curiosamente (ou paradoxalmente, sublinharão alguns mais puristas do método dubitativo), o ambiente não era grosseiro. Também não era fino. Era o que era: nenhum patronato & muito chinelo-de-enfiar-o-dedo, nenhuma beleza fêmea & muita dentuça podre, nenhuma biblioteca & capela nenhuma – mas era humano, era próximo, era nosso. E só nosso.
O século XXI trouxe consigo as pastelarias todas iguais entre si. Resistimos-lhe(s) como podemos: a roupa do maralhal é melhor do que a de antigamente mas o fino & a caneca são piorzitos; a televisão é a cores mas está sempre na TVI (excepto quando há bola que justifique a Sport TV); os clãs continuam a mastigar em voz-alta mas agora “é mais bolos” porque amendoins & tremoços parecem mal no futuro.
Em suma, é uma alegria. Estamos todos vivos, gostamos todos de cá andar, umas vezes a coisa fia mais fina, outras pia mais grossa, alguns de nós já lavamos a placa com elixir bucal de largo espectro de acção bactericida, toda a gente tem phones espertos, que é o que smart quer dizer, todos gostamos do Marcelo mas do Coelho não porque não foi o partido deste a transformar as barracas de antigamente nas casas de telha & tijolo que ainda agora ali estão e por ser próprio dos falhados como nós gramar os (ou com os) vencedores mas não com os falhados iguais a nós tal como o canhoto dos bilhetes fica dextro ao espelho. (Ainda agora: a duas mesas juntas mas sexualmente separadas, quatro maridos pançudos falam da hérnia do Presidente com descontracção enquanto as respectivas pançudas lacrimejam consternação pelo precário coração do Salvador Sobral, “que é o que dá amar por dois, coitadinho”.)
Hemos de reconhecer que de cá para lá como de lá para cá a via fica muito melhor assim alcatroada do que em paralelo, assim como onde era o baldio do lixo subirem agora dois pinheiros-mansos, um salgueiro-da-babilónia & um limoeiro comunitário-de-todos que até arrepimpa de gosto ver, nem o futuro poderia ser só coiso-digital-smart.
Os que éramos já antigos de mocidade há quarentas & picos anos – ocupamos hoje o lugar dos que eram moços há oitentas. E é assim que está bem, assim é que é conversa.
(Eles daqui não sabem que saem em papel de jornal na primeira edição do ano. Antes assim: chamar pobres a (mal-)remediados poderia melindrá-los. Pod’ria, pod’ria: e eu não quero aqui grosserias. Nem finuras. Finuras & grosserias que vão mas é lá para onde se sumiram os tremoços & os amendoins & os melhores finos da Península Ibérica.)
Nisto, desata a chover. A esplanada debanda em imprecações. Fico mais sozinho do que cão sem pedigree. E é desprovido de mais literatura que me molho sem pressa à chuva de 1975, ano em que a malta era lusa & nova, ao passo que 2018 só nos filmes do espaço dUSAmericanos.




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Canzoada Assaltante