Ano Novo, Lusa
Velha
Escrevo-Vos
no dia-primo de Ano Novo sob uma campânula de cartão chamada céu(-muito-)nublado. O Sol não rompe a
cerração. Há uma latência pré-pluvial nos corações agabardinados. Há, há.
Defronte,
onde há mais de quatro décadas era o bairro-de-lata da Ervinha, moram as
habitações ditas sociais dos antigos
pobres da zona. É a esta padaria-pastelaria que os ditos vêm. Estão na mesma:
pobres & antigos (crianças incluídas).
Há
quarenta & tal anos, isto não era padaria nem pastelaria: era um Café
atabernado, servidor (sem modem) de
uma magnífica cerveja-à-pressão & de solo fofo e ruidoso, pois que
atapetado de cascas de tremoços & amendoins, para além da serradura pejada
de beatas mal apagadas & de
escarros estrelados como ovos frescos sobre chão de mosaicos que até lembrava a
Abadia de Westminster.
Curiosamente
(ou paradoxalmente, sublinharão
alguns mais puristas do método dubitativo), o ambiente não era grosseiro.
Também não era fino. Era o que era: nenhum patronato & muito
chinelo-de-enfiar-o-dedo, nenhuma beleza fêmea & muita dentuça podre,
nenhuma biblioteca & capela nenhuma – mas era humano, era próximo, era
nosso. E só nosso.
O
século XXI trouxe consigo as pastelarias todas iguais entre si.
Resistimos-lhe(s) como podemos: a roupa do maralhal é melhor do que a de
antigamente mas o fino & a caneca são piorzitos; a televisão é a
cores mas está sempre na TVI (excepto quando há bola que justifique a Sport TV); os clãs continuam a mastigar em
voz-alta mas agora “é mais bolos”
porque amendoins & tremoços parecem mal no futuro.
Em
suma, é uma alegria. Estamos todos vivos, gostamos todos de cá andar, umas
vezes a coisa fia mais fina, outras pia mais grossa, alguns de nós já lavamos a
placa com elixir bucal de largo espectro de acção bactericida, toda a gente tem
phones espertos,
que é o que smart quer dizer, todos
gostamos do Marcelo mas do Coelho não porque não foi o partido deste a
transformar as barracas de antigamente nas casas de telha & tijolo que
ainda agora ali estão e por ser próprio dos falhados como nós gramar os (ou com os) vencedores mas não com os
falhados iguais a nós tal como o canhoto
dos bilhetes fica dextro ao espelho. (Ainda agora: a duas mesas juntas mas
sexualmente separadas, quatro maridos pançudos falam da hérnia do Presidente
com descontracção enquanto as respectivas pançudas lacrimejam consternação pelo
precário coração do Salvador Sobral, “que
é o que dá amar por dois, coitadinho”.)
Hemos de reconhecer que de cá para lá como
de lá para cá a via fica muito melhor assim alcatroada do que em paralelo,
assim como onde era o baldio do lixo subirem agora dois pinheiros-mansos, um
salgueiro-da-babilónia & um limoeiro comunitário-de-todos que até arrepimpa
de gosto ver, nem o futuro poderia ser só coiso-digital-smart.
Os que éramos já antigos de mocidade há
quarentas & picos anos – ocupamos hoje o lugar dos que eram moços há
oitentas. E é assim que está bem, assim é que é conversa.
(Eles daqui não sabem que saem em papel de
jornal na primeira edição do ano. Antes assim: chamar pobres a (mal-)remediados poderia melindrá-los. Pod’ria, pod’ria: e
eu não quero aqui grosserias. Nem finuras. Finuras & grosserias que vão mas
é lá para onde se sumiram os tremoços & os amendoins & os melhores finos da Península Ibérica.)
Nisto, desata a chover. A esplanada debanda
em imprecações. Fico mais sozinho do que cão sem pedigree. E é desprovido de mais literatura que me molho sem pressa
à chuva de 1975, ano em que a malta era lusa & nova, ao passo que 2018 só
nos filmes do espaço dUSAmericanos.
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