Da felicidade ao
calhas
Há
muitos anos que não resisto às montras das lojas de electrodomésticos. Quedo-me
sempre ante cada uma. Fascina-me mormente a esquizofrenia dos televisores
ligados a canais diferentes. O melhor daquele aparato, todavia, está na falta
do som. São como os aquários. Como os aquários e como as lareiras, manam
qualquer coisa de hipnótico que faz a vista não pen(s)ar. Ambulâncias que não
gritam, carros da polícia que não uivam, idosos negrejando o granito das luras
serranas, velhinhos urbanos aos saltos em fantásticas promoções de linimento milagroso
capaz de embalsamar o reuma das articulações, flashes do carnaval permanente do senhor Presidente, planos mais ou
menos demorados dos viga(c)ristas que protagonizam a corrupção-ao-milhão do momento,
a recentíssima invenção das ondas gigantes da Nazaré, desastres matematicamente
fatais ensanguentando as rodovias, rostos de bombeiros exaustos com o ígneo
inferno por pano-de-fundo, apreensões de droga a granel, putos com armas,
ex-maridos com catanas, divórcios gay
de ribalta pindérica, supostos talentos canoros e instantâneos, o malar mineral
do senhor ex-PR, a estupefacção ensaiada do senhor ex-PM, coacções preventivas
de pais, filhos & Espíritos Santos, imparável afromuçulmanização daquilo a
que outrora chamámos Europa, o comunismo evidentíssimo do Papa franciscófilo, o
dobermanismo evidentíssimo do mastim da Rússia, os mais recentes tweets da cenoura maluca que
USAmericanos entronizaram, a palidez indignada de Angola ante as coloniais
suspeições de corrupção, outra vez o senhor Presidente dos Afectos passarinhando à beija-flor o jardim lusitano – e bola,
sempre bola, muita bola, cada vez mais bola.
Há
muitos anos que, ante as montras electrodomesticadoras, e sem estar sentado,
espero a reportagem decisiva, muda embora, que mostre & demonstre a via que
leve ao trabalho para todos, à escola deveras instrutiva, à limpeza definitiva dos
rios, aos hospitais não sobrelotados, aos sábados de correios, postos de saúde
e bibliotecas abertos todo o dia, à energia solar aproveitada em pleno, à
capitalização do mar como tesouro sem fundo, à naturalidade do civismo como
premissa de cidadania.
Não
me parece que sequer uma destas coisas tenha esse televisor para me vender.
Para me vendar, terá. Para me vender, não tem. Por conseguinte, lá me consigo
soltar do pasmo hipnótico e vou à minha vida. Vou ciente de ser toleima
irremediável esperar seja o que for de um País (e de um mundo) de máquinas
mudas electrodomesticando um rebanho de surdos. E cegos. E mudos.
E,
assim como assim, se calhar felizes – felizes como o senhor, senhor Presidente.
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