Da insanável inexistência de Deus
Foi há mais de
trinta anos. O filho de um Irmão meu ficou-nos doente de uma pneumonia séria.
Filtrado pela urgência pediátrica, ficou internado com a mãe. Lá fomos todos,
em aflita procissão, a saber dele, atulhando a sala-de-espera de uma ânsia
inominável. Fazíamos óós com a boca
como peixes de aquário não ventilado. Devagarinho, o menino convalesceu.
Parecia um lírio transparente. A boquita de morango, gretada pela febre,
ensinava-nos o código-de-barras da desidratação. Como sempre sucede em todo o
resto de todo o mundo, as mulheres mostraram-se mais fortes. A Cecília não
desamparava o filho da vida dela. A minha Mãe, a minha Irmã e as minhas outras
cunhadas conluiaram-se num gabinete-de-crise que jamais vacilou no combate ao
infortúnio. Nós, homens, meu Pai incluído, parecíamos pardais partidos à
pedrada. Foi então que, no decurso da primeira visita autorizada, cometi um dos
mais amargos erros da minha vida. Só agora, mais de três décadas depois, me
sinto em robustez para contar tal passe.
Era no
Pediátrico antigo. As regras de estadia e de circulação eram então muito mais
relaxadas do que agora são. Com todos à volta do Ruizinho, dei-me à derivação.
Da enfermaria dele, atraído pelo Minotauro da curiosidade, fiz-me ao labirinto.
Dei por mim num dédalo sem retorno.
Sem médicos nem
enfermeiras que me tolhessem o passo, adentrei uma enfermaria escurecida como
noite privada. A um canto alto, uma luz-de-presença tiritava a febre de um
amarelo glauco, um amarelo mau de pus quente. Quem me dera, hoje, não ter
entrado naquela divisão irremediável. Mas é que entrei. E até hoje dela não saí
– por causa deste pecado portátil chamado lembrança.
Era a enfermaria
dos casos sem remédio. E era a demonstração mais cabal, mais prática e mais
científica da inexistência de Deus. De qualquer deus de qualquer seita de
qualquer superstição de qualquer cegueira & de qualquer guerra em Seu Nome.
Era uma menina,
a primeira criança incurável que vi. As mãozinhas perfeitas e o rosto da mais
desarmada e mais desarmante lindeza eram contrariados pelo capacete da
hidrocefalia. O crânio descomunal, eivado de veias azul-cobalto estrangulando uma
miríade sideral de róseos riozinhos, tornava aquela filha-de-alguém numa
espécie insuportável de extraterrestre dos piores filmes. Senti de imediato a
gravidade do meu erro e a indesculpabilidade da minha devassa.
Mais além, um
menino. Tinha três anos de vida, apurei depois. Nesses três anos, só chorara.
Era cego, era surdo, era de janelas fechadas a todo o exterior. Soube depois
que, desenganados pelos médicos de toda a esperança, os pais daquele bambino insanável
o haviam deixado ali para o que não desse e jamais viesse.
Não me lembro
dos outros quatro, doze ou mil que ali jaziam. Fugi como o covarde que passei a
ser até que a morte me chame pelo nome privado que a minha Mãe me chamava para
lhe dar um beijo.
Calma, que isto
ainda não acabou. Uma década e uns pós depois, encontrei-me no átrio do
Hospital Novo com uma amiga. Chocou-me vê-la a chorar sem peias nem remédio.
Afinal, ela era ali médica. O problema era ela ser daquelas pessoas clínicas
que continuam a ser pessoas apesar do estetoscópio. Quis consolá-la. Não pude.
Vinha de avaliar um caso perdido. Uma infantazita de quatro anos. Leucemia
infantil.
Viemos, ela
& eu, para este Café de onde vos escrevo. Finjo que ela, Dr.ª Maria da
Conceição Saraiva Pinto Athayde, está comigo ainda. É fingimento meu. Ela não
está. O cancro levou-no-la em Dezembro de 2007.
Escrevo de novo
as duas palavrinhas que negam Deus: Leucemia
Infantil. Pouso o lápis e faço como o senhor meu Pai fazia, que era isto
assim: olho o mundo derredor e não encontro nele sinais quaisquer de qualquer
divindade. Do Diabo sim – e por todo o lado.
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