Crónica a modos que
polipropilénica
1 Se a estatuária moderna fosse
feita do mesmo material que dá corpanzil aos mamarrachos eleitos, poderíamos
morrer seguros de nos sucederem tais monumentos. Assim, como parecem ser (e
deixar de ser) de polipropileno, de esferovite, de plasticina, de areia e/ou de
barro que não viu forno – não.
Sim,
andei por Santarém. É de facto uma cidade perigosa. Parece remontar ao
constante temor bíblico das grandes calhoadas na mona à passagem pelos sopés
das torres periclitantes a que o arquitecto medievo se esqueceu de juntar
super-cola. A sério que andei pela bela e desprezada cidade que é Vossa como
foi (e para sempre há-de ser) do Bernardo que era António, esse mesmo (Martinho
do) Rosário não breve. Está bem, eu conto:
2 Cirandei pelo meio das estreitas
artérias. “Pelo meio” – por me ter esquecido de trazer comigo material de
desencarceramento capaz de libertar os passeios (os passeios já de si exíguos e
opressos como o bafo dos asmáticos) da praga de carros que os juncam em perfeito
aparato estacionante de selvajaria anticívica. Tesoura, ferramenta multiusos de
acção dupla, rebarbadora, machado, picareta, expansor, extensor hidráulico, tudo
à base de grupo energético calibrado e em bom trato de manutenção – a falta que
de vós senti! Da próxima vez, talvez não me esqueça de juntar ao estojo do
acordeão, à maneira de saca-pipos, o
canivete de ponta curva que na puberdade me foi oferecido por um amigo
interesseiro cujo pai era patrão de uma recauchutadora de pneumáticos.
3 A estas verdades tristes, junto
uma desconfiança não-alegre. Esta aqui: sou capaz de ser eu quem leva tão
arrastada invernia ao Planalto. Das duas últimas vezes, assim foi. A mais
recente, pior do que a penúltima. Ora leiam:
4 O granizo diagonal vergastava a
vetusta Scalabis ao colo de um vento de más horas, acudindo à nuca o arrepio
glacial dos que de barriga para baixo esperam o gume da guilhotina. Tinha eu
acabado de ser corrido do pórtico do W
Shopping por uma faneca de quarenta quilos mas com farda de securita. Atirei o acordeão para dentro
do estojo depois de recolher os dezassete cêntimos ganhos a tocar ao sentimento
entre as oito e meia e as onze e ¼ da madrugada. Fiquei como estou há coisa de
cinquenta e três anos menos 38 dias: sem norte nem oriente. Restavam-me o sul e
o ocidente. Decidi-me, claro, pelo sul: indo pela Pedro de Santarém, chega-se
num fósforo ao Quinzena.
5 Ainda não era a enchente.
Serviram-me um quartilho, mas na condição de não usar o acordeão para tocar o Minho e Galiza, essa estremecedora
marcha-de-concerto tão parideira de lágrimas viris e tão própria àquele transe
em que o cabo dos forcados e o cavaleiro dão a volta ao arrebol com flores e
lágrimas também. Bebi, o senhor Fernando ofereceu-me o gasto e a porta de
saída, saí.
6 Cá fora, o mundo continuava imundo.
A invernia contrariava o calendário: era já afinal inaugurada pelo relógio a
outrora doce Primavera. Andei muito. Eu fiz Vale de Estacas, eu fiz S. Pedro, eu
passei à Bonduelle, eu saudei sem abrir a boca os Casais do Mocho, eu desembestei-me
pela 114 até Perofilho, eu parei à face de um monturo de lixo espontâneo para
desfazer uma desnecessidade, e segui, segui muito, à passagem pela Jorge
Cordeiro Automóveis Ld.ª já levava um bofe na mão direita & uma aguda
vontade de jamais ter nascido na outra, e foi então que me pus a grande questão
existencial que toda a humana pessoa mais tarde ou menos cedo acaba tendo de pôr
a si mesma por não ter mais ninguém ao pé a quem pô-la: “Quinta dos Cardeais ou
Secorio?”
7 Escolhi o Secorio. Por ser
sexta-feira, havia mangusto de bacalhau na Associação Progresso e Recreio.
Tiveram pena de mim e deixaram-me entrar, mas na condição de não usar o
acordeão para tocar o Hino da Maria da
Fonte, que fica sempre tão bem ou quando há bacalhau ou quando o vinho ainda
se não acabou. Perguntei qual poderia então tocar para agradecer o extremoso
manjar. Disseram-me que tocasse a Chula
do Polipropileno, coisa que fiz sabendo o quão efémero é tudo na vida: a
começar pela própria vida e a acabar nos conjuntos escultóricos da Santarém moderna,
essa arte à la Moita Flores que o
Inverno leva e a Primavera não devolve.
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