SEIS TRÊS VEZES CADA VEZ PARA
FAZER-ME TUNA CADA VOZ
Leiria, 7/I/2013, segunda-feira
I
Tenho
sabido desconhecer com pertinaz valentia o que aí vem.
Uma
pessoa nasce, o corpo faz-se homem, o coração nem tanto.
Apurei
razoável técnica no atirar pão a pombas, entretanto.
Entretanto
e a tantas, que de pertinaz contumácia são elas também.
Ao
meio-dia e qualquer coisa telefonei já ao sobrinho Ca’litos.
Fez-se
ele outro homem, trinta mais cinco contam seus dele os anos.
O
que aí vem:
este
cão dourado esperando, vivendo só cada dia só;
a
ambulância em sossegada marcha regressando de serviço;
o
bigode do senhor polícia pensando no jogo de sueca sábado próximo;
a
reuma-pneuma da senhoria cheiinha de euros na Caixa;
a
manteiga liminar do pão do amor fatiado em dois corpos.
Não
desconheço tudo, que o olhar exerço bem, só que verbalmente.
Anoto
com minúcia o desmando convencional dos elementos mundiais.
A
minha rua, que foz se faz em avenida, basta-nos bem por cosmos.
Sempre
bastou.
Aos
anos que assim estou/sou.
Periferia
é o que posso trazer da Poesia.
II
Falei
com as filhas, uma só de cada vez por enquanto.
Não
pude ainda organizar para elas o espectacular ágape.
Sumos
e torradas para todas ambas, uma vez na vida os três.
Tenho
dado pão conjunto a outras pombas.
Um
homem é um homem, há que municiar provisões.
Os
meus Pais morreram, as ainda me vivem.
Portanto:
a
chegada de luz no rosto em sombra deve versejar.
Versejar-se,
não: o próprio não conta, sua criação é que sim.
Não
é que com isto defenda o estruturalismo abiográfico.
O
que defendo, é o que não ataco mas acometo:
o
amor invencível, a ligação invencível, a invencível perda.
Chego-me
ao balcão e, porquinho-da-Índia, grunho delicadezas.
Um
copinho de doce, uma locução meteorológica, um aleluia português.
Nêsperas
& damascos, botas-de-borracha & charcos, hesíodos & plutarcos.
É
a terça-feira que todas as segundas profetizam à primeira.
Não
é difícil.
Difícil
– é não saber desconhecer: mas isso eu sei. Ou hei.
III
Pássaro
não seco, sumarento antes, congregarei meus benévolos fantasmas
em
mental diáspora por vezes livresca embora mas não sempre.
Linhas
e linhas de montes montando a geometria afinal una:
quanto
basta a que cardíacas cordas se façam tuna.
Da
pessoália fernandina, a prazenteira tríade não era
um pacote de cigarros / uma chávena
de café / um romance policial?
Era.
E não só tal era, claro que não, mas isso era.
Penso
por vezes nessa ilha-de-vozes Fernando chamada.
Penso
nele como em Pessoa que se conhece na rua, mas dentro não.
Ele
tirou o circunflexo ao O para se um
dia na vida em vida publicado em Inglês.
Coitados
dos Ingleses, coitado do Crowley, que Maugham parodiou
e
cuja mansão o Jimmy Page comprou.
Vou
a Pombal amanhã? Vou hoje?
A
decisão cabe ao meu avatar literário.
Uma
taça de sopa, as migas de um resto de pão, uma atenção
prestada
ao acumen de que Poe faz a distinção
abdutiva.
E
que o resto do dia, Pombal ou não, se viva.
IV
Que
o que aí vem, novidade seja – não no falar mas no escrito.
Falar
– é tipo Otelo Saraiva de Carvalho.
O
escrito é Poe, é Pessoa, é Kafka, é Joyce, é Proust – e é agora.
Agora
é a síntese de enquanto-há-tempo.
Não
é queimar uma revolução, é fazê-la.
Uma
pessoa entende esta sextilha como um recado já não futuro.
Agora,
agora – é quando ela chega, assim de verde-preto enroupada.
É
como se ser e aparecer tão bonita lhe não custasse nada.
Uma
rosa de dentes em piano é sua dentição de marfim,
a
mim o quase-ébano dos lábios me custando carmim.
As
senhoras rodam em falas de salão, o chá bule-se a si mesmo.
E
não sei que seja, se a beleza não for sempre cataclismo.
Dou
um recado em cinza desta tarde, que luz foi a que pôde.
Ao
tempo tudo concorre, acorra nada embora porém.
Eu
sempre soube disto, eu juro que sempre soube.
Era
portanto no tempo em que a minha Mãe,
desertada
de filhos entretanto crescidos-idos à vida,
à
ávida vida, dizia:
V
Seria
preciso que não percebera de tua senhoria o mando
para
que regular coubera minha presença mandada.
Isto,
bem no sei, foi tudo espera mais que nada.
E
agora os dias são mais que amanhã, d’aves um bando
que
a gente coleccionou de quanta ave amestrara.
Recorda
tu: praça-dos-táxis, Coimbra, ao Calhabé:
andava
eu então sabendo o que da própria Mãe a morte é.
Moedas
sempre poucas, mas tal riqueza de esperar,
qu’inda
hoje em triplas sextilhas sei recoleccionar
essas
horas-de-chuva, esse verão-de-ervas, quando, no Café,
um
telefonema podia, por poema, valer a leitura,
toda
a leitura, toda a secura, toda a espera afinal procura.
Sou
ainda esse gajo, esse almocreve doido por lápis & azeitonas
que
por Lisboa rastejou perfumes de mal-lavado.
Era
na Rua de S. José. As putas mais masculinas e boazonas
deixavam
pelo chão as roménias e as ténias do esburacado.
Espera.
Tu agora não respires. Atende. A gente agora compreende.
Maravilha
de aqui ao pé: vai estalar: é no Calhabé: vais-me telefonar.
VI
Se
eu escrevesse: OLHA, MORREU O ALVES DA
PASTELARIA;
ou
se: COME METAFÍSICAS, Ó PEQUENA DE
CHOCOLATE,
ninguém
senão de mim se riria (mais do que leria ou Leiria),
dada
a crua ignorância do dislate.
Mas
no entanto o Alves morreu
–
e, graças-ó-caralho, o Alves não era eu.
Eu
só preciso de me não mandarem versos as pessoas que não são versos.
Tenho
a caixa electrónica do correio cheia de poemas-lidl.
Eu
não sou a caixa-de-exclamações-do-Continente,
aí-ó-foda-se!,
aí-ó-gente!
Eu
sou, de facto, um poeta-de-pastelaria
mas
não sou nem o Alves nem morri (nem seria agora que morreria).
O
tédio não me mata, só me refracta ou retrata, nem me retracta.
O
facebook é porreiro porque, a cada música que não compus
e
lá-nele meto, pareço tê-la composto e ser um gajo bestial.
Não
sou. O que se passa, é ter-me o tédio nascido em Portugal.
O
Alves do Pessoa é outro gajo: espreme por aí muita borbulha
que
eu, sendo da Pedrulha, não pus. Nem pus, nem acne. Nem Tabacaria.
TRÊS SONETOS PARA ASSESTAR O FIM DO
DIA
I
Percebo
da juventude a vontade aérea.
Não
má é coisa tal, que eu já não tenho.
Sobretudo,
e sobre tudo, sobrevoa a via venérea
dos
mortos que amei e que mantenho.
E
de vivos, tu, nada? De vivos tudo,
que
deles tudo vivo, como se família
me
fosse o sobrevoo sobre tudo
o
que é morto e vivo e caco de mobília.
Sim,
percebo da juventude o arejar.
Do
meu melhor lápis lhe dou o afiar
e
o papel do caderno nunca é de menos.
Ainda
ontem, que vi a Fátima ao passar,
disse-l’
eu assim: Ó Fatita, ó arejar!
Há
muito a conheço: desde pequenos.
II
Pela
morrinha matinal serás bem-vinda
a
renascer preclara em tua luz.
A
noite já não é, a noite é finda.
(Salvação-porra-caralho-ó-meu-Jesus!)
Dos
pés que trazes frios para a cama,
os
toques são ligeiros de pardal.
Encosta
o gelo leve a quem te ama,
qu’inda
bem que tudo ora é conjugal.
A
meus que amo fora de mulher,
o
amor não confundas, que o mesmo é:
um
querer ter, e tê-lo, e nele crer
e
sempre ter sido como hoj’ ele, a nosso pé,
diz
que sim, que teu Pai é vivo, q’ o laranjal
é
na Rua das Pedras (a da Bruxa), Guia, Portugal.
III
Ramura
de lílios trouxera coisa pouca
marujo
que abrevindera doutrasbandas.
A
não merecia Maria, de tanlouca;
merecia,
e as teve, sesmaritimandas.
Luz
dazeite vingara vinagrencómio.
Corria
carrodebois que mui gania.
Atão
mazist’é ora manicómio?
Não,
qu’isto é duro ouro-ferraria.
Diz-me:
Vens cedo tu p’ra casa tua?
Dizes-me:
Eu vou e vou vestida e toda nua!
Ó
céus abreviados de meus torrões não costumados!
Ó
véus transdecerrados de meus crus antepassados!
Diz-me:
Vens cedo tu p’ra casa tua?
Dizes-me:
Eu vou e vou vesporti e toda tua!
SE TE NAMORAREM AO CABO DO TEU DIA,
TU OUVE
A
pessoa que chega ao fim do dia de trabalho é uma pessoa que se fez boa.
Não
há que dizer dela a não ser que chegou, que (se) partiu mas chegou.
Se
chegou, foi suficiente: e isso é coisa boa, a mais boa
que
há a dizer de uma pessoa.
TENHO SONHADO MAIS
Tenho
sonhado mais que de costume.
Percebo
na incongruência que toda a gente morre mas eu também.
O
amargo do sonho é isso não me fazer espécie alguma.
O
amargo de acordar é ainda ser espécie.
Quando
ao fim de cada dia falamos do que de jantar,
eu
sei que não estou sozinho, vivi já num quarto-renda,
eu
não ando aqui só no pátio-das-cantigas-do-chapéus-há-muitos,
eu
às vezes digo arroz-de-feijão, eu às vezes digo ruy-belo.
Acordo
do corpo, os pés mexem-se como lulas autónomas.
A
boca estala babas acumuladas.
Eu
às vezes pareço sinceramente um velho sinceramente.
Outras
vezes acordo, dou pela roupa no sítio, não se passa nada.
O
borrão da quinta, o borrão da tinta, a ínsua de larangineiras:
terras
de Pais, idos-idos-não-olvidos-e-isto-por-uma-ou-duas-
-gerações-inteiras.
Tinteiras.
Tenho
sonhado mais.
Olha,
esta
noite