Se morrer, hei vivido.
Eterno seria, se não vivera.
27/02/2012
LIGAÇÃO À MEDUSA - 20 (fragmento 1)
Leiria, quinta-feira, 8 de Setembro de 2011
Enquanto o corpo se não desfaz lama e refaz cinza, a alegada unidade dele campeará, em pouco mais ’inda, os mistérios sobre-instantes e os subjacentes. Como por exemplo hoje, uma quinta-feira, a primeiro do último Setembro deste ano autofágico (como todos os meses, todos os seres e todas as obras destes e daqueles). Em Leiria.
Agosto foi tíbio, pusilânime, mesquinho quase. Como previsível, Setembro é de uma força-forno, uma rosa nuclear de gás-luz, o calor derrama-o em chorrilho de pedras esbraseadas que içam o coração às têmporas e quedam as têmporas ao estômago. Os pés tornam-se borracha pegajosa, os olhos atraem as moscas como as luminárias de Las Vegas, os papalvos de chapéu à cowboy. Fideísmos e ontogéneses surdem melancolicamente na ordem do dia-após-o-dia-a-noite.
Uma pessoa cede-se o direito a/de pasmar sem espanto, à maneira de animal dado sem querer nem não-querer à taciturnidade nem feliz nem descontente tão própria da comum gente.
Ninguém usa casaco, não hoje. A fornalha vibra cutiladas moles na arcada da respiração, ardendo os sacos pulmonares como foles muito ígneos, muito fatigados. E na volta da fonte, raparigas de fins do XIX repenicam chineladas de que se esparge o cristal da gotita d’água.
Escoadas de som as tamanquinhas, vibradas e delidas, longe já, as concertinas dos ranchos, arrecadado o milho (e o milho do ouro que a venda do milho-milho comprou), a pessoa-animal vê-se rearremessada de volta ao futuro do agora-apenas: tarde, Setembro, quinta-feira, Leiria, XXI, 2011 etc.
26/02/2012
LIGAÇÃO À MEDUSA - 19 (integral)
19. MERCEARIAS, MERCADORIAS E EXTRAS
Leiria, segunda-feira, 5 de Setembro de 2011
I
Numa álea de ulmeiros, que como podem à álea abrigam do cutileiro vento, pelo entardenoitecer respiro o rio que é, passa, não passa e volta a ser.
Não diabolizo a Vida, que, tal cão e mulher, me pertence enquanto dela (e dele) eu for – e passe, e não passe, e volte a ser: até que não seja ále’alguém.
II
Mercearias e outras mercadorias constam também dos sonhos que as pessoas, ao gás das noites, entretecem. Os bebés mijam-se e tentam falar, os directores de serviços compram cêdês dos Queen às amantes do gin-vermute pós-reunião, as reformas acrílicas protesiam dominós de jardim público, pássaros pousam nos sacos das merceacadorias mais recorrentes, acho-que-a-menina-está-a-chorar-vai-lá-tu-hoje-que-me-sabe-o-fel-a-cinzano-hoje.
III
O Número Dezanove está deitado de barriga no chão, não é fácil andar nas obras à chuva, tanto nas que são líricas como nas que são betoneiras.
O Número Vinte-Dois veio de terras vermelhas que outros sóis alumiam sem brandura nem previdência social, mas ao menos está de pé.
As Bidonvilles do nosso tempo são más traduções do hip-hop alegadamente afro-cigano. O nosso tempo é uma merda tão inumerável (19, 22 etc.) quão enumerável.
Tenho muita pena do nosso tempo.
IV
– A Vida, isto é tudo uma passagem
– ouço sempre dizer em cada enterro.
É capaz.
V
Coisas com que absoluta maravilha absurda venho escorando a minha vida: versos; jantar com a minha mulher (ou antigamente com o meu cão, quando solteiros ambos) através de frases que trocam os episódios do dia uno que em separado acabamos de viver; um irmão que tive e já morreu e que continua a sorrir numa fotografia que depus ao lado do boião de faiança em que guardo trocos para se houver falta de tabaco; enquanto não acabamos de viver, nem de vir, nem de ver.
VI
Os artistas saem pelos fundos e mundos da manhã, reconhecendo em cada manhã a promessa não cumprida (não a ida, não ainda) da vida, que é aliás, e a lilás, linda.
VII
Tenho um amigo que adoeceu sem nos pedir licença. Há festivais de teatro que os municípios aproveitam para inculcar sardinha assada. Na infância tive um prato azul de plástico duro a que chamavam domplex. Há um tipo de lagarta que para subir um pinheiro se faz til. Quando o mar cheira a chuva é porque o peixe-voador voou. Tenho um amigo que adoeceu antes de nós. Se uma senhora envelhecida nos surge em sonho toda de lingerie, nós rapazes somos o Pai, atenção. A maravilha de quando faz muito sol é, mesmo assim, um gajo ser capaz de molhar o mundo só com os olhos. Esse meu amigo entretém as noites como nós: fatalmente, portanto. De bandas das docas, a salsugem é bravia como no tempo da II Guerra Mundial, que foi quando os meus Pais se casaram para isto, isto que escreve.
VIII
Tenho há mais de trinta anos um livros sobre os povos antigos da Anatólia que ainda não li nem sei onde fica, se na Turquia, se amanhã, que é outro dia.
IX
(Agora mais trint’anos é que duvido, Ana, não sejas Tól(i)a.)
X
Vim daquele lado onde assam frangos e costuram hemistíquios. Também cozem batatas, mas menos do que o quanto censuram cesuras. (Um homem de olhos completamente azuis e bigode preto por completo desconfia de eu tanto escrever no café onde ele descansa do dia dele, que foi completamente de afagar paredes a cimento húmido como um beijo dado-e-recolhido aos catorze anos.) venho desse lado húmido, afagado, cozido.
XI
Toco a verde acordado um papelito que sonhei.
XII
Entre a Poesia e a poesia, a coisa ou é gládio, ou canivete-suíço.
XIII
(Vincula-me à terra passada a sombra aromática,
que da meninice trai a clara solução.
Norma outra não tinha que a da gramática,
qu’ind’oje me é p’ra tudo solução.)
XIV
Dinis recebendo em Trancoso, de Aragão, Isabel.
Moluscos e bivalves às frias águas azuis borbulhando.
(Devo sempre a estas enumerações proceder para sempre, se é que estilo quero-man-ter.)
As janelas manuelinas e as correrias afonsinas.
A navalha, a azeitona, a lua, o homo-homem.
Os 75 anos da morte de Federico García Lorca e os 65 de nascimento de Freddie Mercury, diz o vermute-director à amante-gin, à excepção de Lorca, que não sabe.
XV
Arredei há muitos anos da minha porta o lixo não voluntario que a involuntária mocidade permitiu. Digo “lixo” pretendendo dizer “lixo”. Antigamente, havia umas pacotilhas de pó chamadas Tang que queriam ser sumo de laranja.
XVI
O Número Vinte-Três passa por nórdico – mas é do Sabugal e albino, apenas.
XVII
Conversa comigo na conservatória-do-registo-civil, que é onde as asneiras se assinam e as idem passadas se assassinam, vá, vem, anda, passa, não passes.
XVIII
Um corpo no mar faz de flor dura.
O pêndulo vibra torsos e torções.
O norte-magnético não ilude cães-esquimós.
A nós sim, a nós.
XIX
Nunca da nossa Língua parti de vez. O mais que não fiz, foi deixar de refazê-la. Mira, Graça, como Ela acode, líquida, a cada interstício significativo. Repara, Ana, em como Ela se faz filha sem concurso de parente pai ou aparente mãe. Observa, Lucília, a maneira com que ela insiste em fazer o 5.º-ano à noite no S. Tomás de Aquino. Olha, Mãe, como Ela ainda te fala
(e não se cala).
Não, nunca parti.
Mas por ti,
sim.
XX
O meu trabalho desta noite está quase feito. Talvez coma ainda uma sopa, ou refaça amor, ou veja um documentário na têvê-cabo, ou talvez isto tudo faça sem ser por esta ordem.
E depois, pendular, hei-de dormir com a velha outra vez, abrigada de ulmeiros como puder ela, o meu cão-rio aos pés dela, coitada, à sombra vinculada, álea e, Dinis, alada.
(EXTRA 1:)
Mansos toques do lado do coração físico
alertam o corredor de linhas quanto à insensatez
do Tempo, digo, a XIV Olimpíada (Londres, 1948),
a flacidez do ligamento suspensor da mama
(tanto a esquerda da Cardinale como a direita
do Stallone),
se eu sou um corredor de linhas?,
sim-sou,
a-ante-após-até,
a-ab-abs-coram-cum-de.
Os signos úricos do ácido nas articulações
chegam da renal escassez para purinas-soluções.
A Poesia é, por mal, bem outra coisa.
Uma pessoa faz que não liga aos sinais.
Eu costumo pôr a mão no equador do corpo,
o manso toque é pulmonar mas a gente
costuma não ligar nem à hipocondria
nem à poesia.
A Poesia é bem – por mal – coisa outra.
(Castanha, onde, flava, o mel s’insurge
etc.)
(EXTRA 2:)
Sobre o alegado “acordo” & “ortográfico” da alegada lusofonia, digo:
As irâmides do Egito.
LIGAÇÃO À MEDUSA - 18 (integral)
18. DOIS SONETOS E UMA SEXTILHA
Leiria, terça-feira, 30 de Agosto de 2011
I. SONETO AQUOSO
Aquosa orla te molhe, Mãe, amor, a fala,
que duros são os dias mais calados.
Ao prospecto lunar, quem vê e cala?
E quem ainda e todavia se rala?
Vivos são nossos mortos, enterr’amados.
A nada tal importância se sobeja,
q’a gente é educada, a gente beija
e cumprimenta, irmão, mãe na mão.
Acabou o emprego de/para toda a vida,
dita útil: e o pano é de viver mui inconsútil.
Aos sábados, nós estamos fechados.
Calados. Enterrados. Porém,
há que dizer, talvez, à Mãe
que agradecidos somos – e agraciados.
II. SONETO À VISTA DE OLHOS MARAVILHOSOS
Castanhos, onde, flavo, o mel s’insurge.
Terra de cabelo, de ondas brancas.
Patuleia-se terno – e tenro surge
à vista do café, que aliás proíbe
a formosura tanta que, nele, dele vive.
Humílimo senhor de suas patas,
que mãos quatro são à vista crua.
E dele toda a física é nua:
daqui o vejo em miradas insensatas.
Trata-se, ó minha ima voz, de um ser
a que valia bem a pena pertencer.
Não mais vos digo, Mãe e meu irmão
e filhas minhas, vo-lo juro sem senão,
que eram maravilhosos – os do meu cão.
III. ASSENTAMENTO ASSERTIVO
A mulher do café diz frases práticas.
O amor deveria ser particular
sempre, patibular é que nunca.
Os guarda-redes também envelhecem,
não é só a gente, por mais avançada.
Correm ventos, lentos morrem.
25/02/2012
LIGAÇÃO À MEDUSA - 17 (integral)
17. VII ROMANOS E 10 ÁRABES
Leiria, sexta-feira, 19 de Agosto de 2011
I. 10 FICHAS DELA
Ela louva no íntimo só dela a mocidade de cada dia, despertando cedo as aves para os trabalhos voláteis que, segundo ela, Ele lhes consignou.
Não longe da casa, a ponte urde a passagem sobre e través a tessitura da veia fluvial que, a céu aberto, encerra a terra de refrígido húmus recriador.
Ela foi feita e refez-se em esta mesma casa, a qual, idos em paz os pais, lhe resta de recolhimento com horta e árvores de fruto.
Dentro em armário-arquivador de metal pintado a verde, ela conserva fichas cujas notações sumárias ela nem espera venham, no dela pós-passamento, a ser a soma viática de quem tiver ela sido enquanto foi.
Algumas de tais fichas podem aqui ser representadas, do que faço assento:
1
Aves sempre moças
em voláteis trabalhos,
Senhor.
2
Pais em paz, pais em país-paz.
3
A lacrimogénea cebola, na horta.
A ourives laranjeira, perto.
4
Pragmática inutilidade das palavras,
estas,
a que pertenço quanto penso.
5
Ao menos o olhar,
essa
força aérea.
6
Rolo compressor dos meses,
descompressor das vidas-anos.
7
Animais livres e famintos
rondam
a minha casa:
nunca os chamo,
nunca os afugento.
8
(Na feira dos domingos, certo um deles,
aquele olhar de homem, azul,
posto em mim,
a roupa
me despindo,
a pele
me revestindo.)
9
Falo à noite na horta,
as árvores
inclinam a cabeça e ouvem-
-me.
10
Eu
sei.
II. ITÁLICOS ESCUTADOS NA MESA AO LADO
Risco contínuo.
Espírito santo.
O pai dele.
A única coisa.
À procura do perigo.
Eu tenho medo.
O dobro das coisas.
A fundo.
Não há segurança.
Por/exemplo para/passeio.
O cromado é a pele.
Facilitar o outro.
Entrar naquela das guerras.
Ir para Lisboa.
Uma pipa de massa.
Não fez o espólio.
A viver juntos.
Tem dias.
Pátrio.
Pessoas em que me reconheci.
Amortizações fiscais.
Absinto/dos pobres.
É/a velhice/assim a vida.
Por outro lado de qualquer maneira.
Dependente do ascendente.
Quase todos os dias tenho alguma coisa.
Sem mentir há um mês.
Sonho sozinho so(zi)nho.
Sempre com muito bom modo.
Como uns garotos.
III. CE/LE/RE/BRAR
Celebremos as formigas e a felicidade da inconsciência.
Assim à glória da levedura e às baratas também.
Celebrar é uma coisa boa, mete vinho, nem de fé
precisa: preciso, é cerebrar.
IV. COMO NA CANÇÃO DO ZÉ CID
Amanhã não se sabe hoje se ontem se esteve morto.
No Baleal de Peniche, ante o mar de Raul Brandão, uma pessoa amanhã não se soube.
As famílias esboroam-se como penedias dos dias demasiados, como arribas litorais que o vento, as maresias e os fados das litosferas alúem.
Eu amanhã cardei hoje, sou a formiga cantante.
Ontem se saberá.
V. BOOMERANG
Um boomerang de aves rumava hoje a sul-zénite
de eu olhá-las em meu delas norte-nadir.
Era pela tarde acabando-se: cegarregas & açucenas
ciciavam ’inda a sonora seda de, em tarde, noite ser.
Eu, nem feliz nem tristonho,
que a vida é um sozinho sonho.
E assim a digo, a deixo e a ponho.
VI. SEM RESPONSO
Onde se quedará a senhora que a gatos
gasalho dava de bom peixe em seu pátio?
Dela o marido frigia bifes em cervejaria,
que me não consta existam já ambos,
nem cervejaria nem marido. Os gatos foram,
mas – e a senhora? Acudirá ela ’inda
a fantasmas-gatos e a tardios na noite
pressurosos erosgestos de saúdo esponsal?
Vós mo não direis,
que no que me ledes,
responso me não
achareis.
VII
Ela tinha que dela se não dissesse, mas eu digo.
Da boca fora, a língua surdia de dentro os olhos.
Sentava-se à sombra em aceitação do mundo.
O mundo tinha coisas aceitáveis:
– os pátios onde a sardinha fumegava vizinhanças;
– a queima-das-fitas com doutores novos & velhos;
– a rainha-santa-mesmo-para-quem-não-acredita;
– os artis-tristes-tas que faziam mais filhos do que obra.
LIGAÇÃO À MEDUSA - 16 (integral)
16. SOU AGORA COISA
Leiria, quinta-feira, 18 de Agosto de 2011
I
E a íntima vigilância de, por um lado, os Livros, e de, por outro, os Gestos Olhados, me dará clareza que das Luzes vem. Pois que, lendo, irei sendo. E vendo, sendo mais.
Cometo transes que ao sortilégio da Atenção atribuo, mas por igual pode que também da Abstenção provenham: tal que dormindo.
Venerável, veneranda e venerada seja ainda a ávida vida a haver, qual, por breve, menos abrevia eternitardes qual esta de Leiria, dez mais oito dias a Gosto do Senhor, cujo ano passa onze de dois mil.
Assim por modos logro desagravar-me de mais fundas tristuras, à maneira das que ante o Mar se têm dele vendo vindo ao vento lento os Amados Mortos de Família & Amizades.
Feição sem perfeição como todas a minha é. Proveito aufiro de sabê-lo sem ressabiá-lo. Medíocres perversões não raro a conquistam e enquistam, sei-o bem, por mal meu. Mas nas Estalagens os televisores ardem, e funcionam as Máquinas de que se ordenha café, e as moças envelhecem elasticamente quitando a Beleza de aromados pós de âmbar macerado em malvasia, depende porém também do dia.
O problema está nas Moscas, cuja cola dérmica sobremaneira excita, por irritação, a bonomia de um escrivão como eu, que sou sem Pais mas com Filhas. Prática burburinhada eu labie em contra elas, foda-se-ando-as cada vez mesma que me ouriçam. E, podendo, esmagá-las de firmes palma e palmada.
Honra, Reverência, Paciência, Probidade, Munição, Premonição, Observatório & Observação: Qualidades eu possa ainda, embora minhas não, ir mancheando de aberta mão, que escreve, mais de mão fechada, que ao manuscrito segura.
Assim seja – e agora, ó Rosa!, uma cerveja.
II
Uma quinta-feira
de luz tão formosa
que viva se goza
viva e inteira.
Passa o mês a ano
e o ano acalma
na maré da alma
do temp’oceano.
Ilha mais vetusta
a do coração
a quem bem mais custa
olho do que mão
e palavra armada
e bélico modo
angélico todo
da fereza usada.
Arcanjos nos valham
na cidade feroz
somos barcos nós
que em voz s’encalham.
Diga, senhor Martins,
que coisa há-de ser
certa no viver
que certo é o morrer.
Álamo e salgueiro
faia e pinheiro
vento sobranceiro
rama os faz viver.
Uma quinta-feira
etc.
III
Sou agora coisa de dois meses mais velho
do que o meu Pai no dia em que nasci
por dele obra e graça da minha Mãe.
Disto,
nem húmida vaidade
nem vã humildade:
uma pessoa nasce, morre-lhe quem a/se ama,
depois
etc.
Sou agora coisa.
LIGAÇÃO À MEDUSA - 15 (integral)
15. M(O)ELANCOLIA
Leiria, quarta-feira, 17 de Agosto de 2011
Companheira e eu fomos hoje pelo entardenoitecer até arribas de São Pedro de Moel. De um terraço-esplanada fruímos a ânsia melancólica do mar, a eterna antiguidade jovem dele – e dele, subindo ao céu desazulando-se em negro, aquele anil que uma fita de poalha de tijolo condecorava. Devemos ter sido felizes partilhando o ar, o rumoroso pélago, a comunidade do nosso silêncio melhorado pelas lonjuras alaranjadas dos candeeiros da costa.
Digo a minha (a nossa) vida em língua portuguesa. Até em português (nos) calo fundo. Ante o oceano visitante de São Pedro, senti os meus mortos e pensei nos meus vivos: gente portátil toda ela.
O farol pensava luz em terra num sonho de barcos. Um pescador à linha voltava em solidão a casa. Era muito jovem, o rapaz que servia a esplanada-terraço. E o azul do horizonte era a consequência da água tornando-se ar.
Océuano: oceano e céu.
E o ano seu: dela, minha companheira ante a mais invasiva reiteração da solidão essencial do ser humano, o mar-firmamento. Ali-além, por arribas de São Pedro de Moel.
–Daniel, –
disse-me ela
– agora não pode nunca mais nem jamais deixar de ser agora.
Eu estava a café, ela a água, o mar fazia-se negro nas pedras do areal tão breve como a vida, as vidas, as vidas de toda a gente, as gentes de toda a vida. Omaroamor etc.
A maresia tocava as vivendas litorais em pleno rosto-empena. Deu-nos pena não termos uma ainda, não ainda, tal que nela exercêssemos o ministério da partilha de tudo o que há: duas pessoas com suas sombras individuais e sua luz comum.
E a noite vicejava fresca com seu ferro e seu veludo – imensa e mansa. Pouca gente pelas ruas, pouca nos estabelecimentos-bebedouros: a crise económica, a pobreza social etc.
Ourejámos de faróis próprios a noite da estrada-regresso. Reconhecemos os anos porvindos e poridos: anos sem nós-em-corpo, como talvez tivesse de ser – e foi – e foram. A paz era uma mercadoria que nos retornava. Ao cabo da vi(n)da, vim escrever para este café: futebol no televisor, gente sentada como ovelhas dadas à fadiga dos dias, chocolates-escaparates, o crava-cigarros de todos os dias mendigando nicotina sem dor nem pudor, a maresia, enfim, das vidas alheias, onde não ingressa a certeza da minha necessidade de ânsia, distância e m(o)elancolia.
23/02/2012
Rosário Breve nº 247 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 23 de Fevereiro de 2012
Vendo perfume
As minhas infância e adolescência decorreram no lance norte da mui formosa e mui histórica cidade de Coimbra. Chamava-se a área Zona Industrial da Pedrulha, que hoje está quase por completo obliterada. Rúem de pé as fábricas: como árvores de que despediram os pássaros operários.
Recordo: ao entardenoitecer, o bairro-aldeia respirava o perfume doce das bolachas da Triunfo. Ser criança respiratória desse incenso de açúcar equivalia a uma espécie de levitação. Paro agora de recordar e vejo as ruínas da Triunfo (bolachas-massas-rações), as ruínas da Fábrica de Cervejas de Coimbra (Topázio, Ónix), as ruínas da Estaco (louças sanitárias), as ruínas da Gomes Porto (fundições), o descampado onde era o Matadouro Municipal, o esqueleto da Fiaco (fiações, têxteis), o fantasma da Atlântida (imprensa, editora) e ainda esses dois espectros fátuos da infância e da adolescência que fui e não voltarei a ser.
Continuo a olhar e a ver: Portugal é hoje uma Pedrulha aumentada: por toda a parte encerram fábricas e serviços, escolas e maternidades, freguesias e sonhos. É um país proibido pela ganância histriónica de meia-dúzia de palhaços do circo político-partidário que ressuscita incessantemente da estrumeira rotativista à la século XIX, numa espécie de páscoa vitalícia borrada de carnaval perpétuo.
Meia-dúzia de cevados que chafurdam na esterqueira infligida aos outros, aos que querem trabalhar e não têm onde, aos que querem um tribunal e lho fecham, aos que querem um centro de saúde e lho aloquetam, aos que querem uma sopa e lhes dão palha. Vale-me este mínimo: a liberdade de dizer a essa canalhada que, num concurso de matar porcos à chapada, eles seriam os primeiros a fugir das chapadas.
Não receio o caciquismo endémico desta ou daquela autarquia. Eu só receio que o futuro se pareça com o fim da minha adolescência, lá onde o entardenoitecer deixou de ser perfumado pela bolacha da esperança justa e lavada e pedrulhense e portuguesa.
20/02/2012
LIGAÇÃO À MEDUSA - 14 (integral)
© DA – 20-XI-2011
14. A QUEM RESPONDER NÃO PODE JÁ
Louriçal, quinta-feira, 11 de Agosto de 2011
Visão mansa de duas senhoras tomando chá & bolos: tão femininas, tão repousantes na manhã refrescada pela suave morte da noite: 7h15m da quinta-feira.
Disto deixo testemunho breve, do tudo que é quase nada, a saber: a vida.
A névoa madrugadora cede corredor ao sol que cresce e se metastiza como um tumor muito benigno.
(Levo a ombros meus mesmos, e da vida, escombros.)
Tenho para com ela (e para com estas ambas senhoras-de-chá), a vida, uma dívida e uma dúvida soberanas.
(Amo a minha Mãe, mas ela está morta.)
O pintor alastra-se na imagem nova, aquela que, dele saindo, a ele, pródiga, torna, filha.
Mana do sino a érea onda sonora que a casas e campos lastra o Tempo cursor: um magma, uma levedura, um credo de tubarões efervescentes nas bolhas do sangue pensativo.
E à tórrida manhã, eu minha chamo, pois que amo e reclamo a quem pertenço.
Fumigo incenso, penso que proclamo bem o ser, pertencendo. E ’inda chamo
17/02/2012
Rosário Breve nº 246 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 16 de Fevereiro de 2012
Valente resposta
Eu era esta semana para embirrar com o vereador António Valente, o qual, numa caricata e obtusa imitação da Rainha Santa, transformou os (muitos, desde Maio de 2010) euros devidos aos Bombeiros do concelho de Santarém em bilhetes para a bola, de onde só pude inferir que bola em vez de bolo só de tolo.
O problema é que o meu irmão Fernando me telefonou para me contar duas histórias verídicas passadas lá por arrabaldes da nossa Coimbra. Das duas, conto-vos uma. Atenção: é verdadeira até ao tutano.
Andava fulano, fora da época cinegética legal, à caça do coelho. Não levava espingarda, só quatro cães. Empenhadamente andavam farejando os cinco, quando se lhes deparou a presença inquisitorial de dois fiscais da Venatória (que o povo diz “Abonatória”). E vão os fiscais: – Então anda-me aqui você aos coelhos fora de época? E vai o homenzinho: – Aos coelhos, eu? E os fiscais: – Pois, aos coelhos! Com os cães! E ele: – Quais cães!? (E os cães atrás dele a darem-darem ao rabo.)
– Os cães nem são meus!...
E os fiscais: – Não são seus? Olhe-os aí a andarem atrás de si!
E o inocêncio do homem então: – Vocemecês também andam atrás de mim e não são meus, pois não?
Agarrado ao telefone, chorei a rir em plena rua. Troquei abraços e saudades com o meu irmão Fernando, sentei-me na tasca da Rosa e pus-me a pensar, como não consta que algum ministro o faça. Tinha-se-me esvaído a embirração com o também inocêncio António Valente. Ou não?
Sim – ou não?
Aproveitando a historieta, não posso alegorizá-lo como fiscal venatório. Como venal, posso. Como venial, também. Como banal, idem. Mas como “abonatório”, não. Ficar-me-ia mal metaforizar na sua/dele pessoa algum dos canitos do clandestino quarteto. Como coelho, também não: sobra-nos bem (mal) o de Massamá.
Resta-me ver na córnea chico-espertice do caçador furtivo a lerda insensatez do vereador a quem a matilha dos calotes (ou “cães”, no linguajar do povo) não pertence, embora muito lhe ladre às pernas.
De modo que sempre cacei o meu coelho, que, Valente de nome embora, me parece fraquito de acção e pensamento.
(Mas se ele me der um bilhete para o meu Benfica, esta crónica nem é minha, nem me faz, de contente, dar ao rabo.)
11/02/2012
Rosário Breve nº 245 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 9 de Janeiro de 2012
A minha Leonor tirou a carta de condução
A primeira das minhas duas filhas chama-se Leonor.
Dezembro passado, não sei como, fez 18 anos. Permiti-me vós que vos perore um pouco a propósito dela. Trata-se de uma rosa duplicada: porque é ela e porque tem 18 anos.
É de olhos peliculados a rebordo de cristal, em que a natureza do castanho desdobra a avelã torrada à força vingativa do mel. Afogueia-lhe a face uma espécie de pureza ígnea em que me nada custa descobrir o rubi e a saúde. Boca lindíssima de morango bífido. E dentes a que assoma a perla camoniana dos iniciados. Mãos terríveis de, como a mãe, clarinetista: máquinas de desdobrar seda. Pèzitos que conjugam um sol muito branco e uma neve de oiro, caramba! Peititos perfeitos: metades de limão tocadas pela seiva da mocidade. Um cabelo franco como uma declaração de princípios humanos. Os senhores estão a ver, não é verdade?
Bem, o problema é que terça-feira passada, dia 7, essa descalça formosura me acordou pelo telefone. Estava feliz, o que me desestremunhou de imediato. Acabara de tirar a carta de condução. Depois da mãe, fui o seguinte a saber. A carta de condução de automóvel!, gemi e pontoexclamei eu, de coração a ganir de cianeto puro.
E ela: – Eh eh!
E eu: – Ai ai!
A minha menina é, portanto, encartada. Sábado que vem, já vai ser de carro que ela vai dar aulas de música à Filarmónica das Cortes. O que vos peço, senhores, é tão-só isto: se fordes de carro, parai. Parai e garanti-me a passagem em total integridade e segurança da rosa que os meus anos vêem e garantem como duplicada.
02/02/2012
Rosário Breve nº 244- in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 2 de Fevereiro de 2012
A cabra de Fareja
(Devo ao CM de 30 de Janeiro último o mote para as voltas desta página.)
Parece que lá muito para o Norte, numa terriola de nome Fareja (bandas de Fafe), as campas do respectivo cemitério paroquial são mais adornadas de flores plásticas que de naturais. A culpa é de uma cabra. Livre, liberta, libertina, gulosa, atrevida e impune como um sacrista pró-troika, a criatura de pés de Diabo tem ido (muito) àquele campo-santo empanturrar-se das votivas, saudosas e amáveis flores naturais com que os vivos usam colorir o preto-e-branco dos eternos repousos. A cornúpeta profanadora tem sido mais falatoriada na aldeia do que, na minha, a fuga da mulher do Meireles para a Venezuela.
Armando T., presidente da Junta lá de Fareja, anda desconsolado. Jura a pés juntos (nem de propósito, já que de cemitério falamos) que já mil-e-uma vezes tentou apanhar a cabra, mas que até agora nicles-batatóides. Já Maria A. afiança que o home’ dela também. Isto é: também não. Isto é: que o presidente amailo home’ dela e muitos outros também ainda não conseguiram apanhar a cabra.
Ora, isto desconcerta-me. Eu e a rapaziada da minha terra já teríamos há muito arresolvido o assunto: por cá, apanhar a cabra é coisa que nos é tão certa e garantida como o senhor Manoel Matusalém de Oliveira fazer filmes quietos. Eu até já vou no quarto ajuntamento de facto por ser tão expedito e diligente e constante nessa humilde versão lusa da expedição ao tigre. De modos que não me entra no bestunto a canhestrice do homenzio de Fareja. Não entra.
Claro que, mal soube da história, fui logo parlapiá-la à tasca da Rosa. O Freitas, que é muito católico, diz que o mais era excomungá-la a zagalote e dar os bocados aos pobres. O Belmiro, que tem venda, arrespondeu-l’e que dá-la era mas era o caraças, que aquilo era talhá-la em postas e vendê-la (ele) em chanfana tipo bocados de frango. O Magalhães, que diz que é maçon por ter andado de pedreiro em França, diz que sabe certezinha-absoluta que comer o natural dos outros é mando de um tal grande arquitecto que lhe costuma fazer favores manhosos nas obras. Mas, cá p’ra mim, quem acertou em cheio foi o Chico Moita, que percebe sempre muito de tudo como o Nuno Rogeiro e muito mais que os outros vadios todos, quem arresolveu de vez o caso: “Flores? Disso percebe cá o je. Vai-se a ver não é senão a mulher ali do Meireles que, em vez de fugir para a Venezuela, fugiu mas é pa’ Fafe.”
A chatice foi que o Jorgito Carvalho, que trabalhou de cantineiro na pide de agora depois do vintcinqdabril e é mais bufo que um sopro de gato, foi logo meter tudo no cu ó Meireles e claro que teve de haver porrada de criar bicho. Ora, como nem é de admiração o Chico Moita levou mais do que deu, agora só aparece cá na tasca para aí metade das vezes.
Bendita cabra.
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