26/01/2011

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 3)





Ao flanco do Hotel Astória chega o hálito do Rio, gerações de pobre gente costuram as ruas a ponto-cruz, a Noite tudo faz para ser luz, mas não é fácil viver tão atento ao nada das coisas simples, digo: a pensão que recolhe os caixeiros-viajantes de retrosaria ou caramelos, os bate-chapas amodorrados por uma sexualidade de aluguer quase filosofia, as dactilógrafas de malinha de napa a condizer com o lacre dos sapatos de napa também, o bafo de geada que sobe do Rio para instituir laranjas e pensões.
Quando disto de te falo, isto te digo: a movimentação migratória torna apátrida o coração.
É naturalíssimo que as pessoas se tornem albatrozes.
Ao cabo de uns anos sem voar, é naturalíssimo que as pessoas se tornem atrozes  albatrozes.
A cabeça é um coração com cabelo.
E difícil é manter-lhe a musculação sangrenta, a vocação da romã, o estojo de rubis.
Quando rondo a minha Cidade, o maior nirvana que posso é a porta metálica de correr da receosa ourivesaria.
E isto é isto sempre, toda a noite e cada dia.

2 comentários:

Joaquim Jorge Carvalho disse...

"A cabeça é um coração com cabelo." Imagem muito, muito boa. Vai além de metáfora, cresce (naturalmente) para alegoria. Por exemplo, cefaleia do sentir, calvície das emoções, caspa dos amores, etc.
Lê-se Daniel Abrunheiro e há sempre surpresas, invenção, novidade.
Thanks!

Daniel Abrunheiro disse...

Je te remercie, mon Ami.

Canzoada Assaltante