02/02/2008

A Noite em Breve – capítulo 18


Com a Didi e o Pinóquio, no pátio, antes de 1970
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A NOITE EM BREVE – 18
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)


18
Caramulo, entardenoitecer (prosa) e noite (versos) de 1 de Setembro de 2007

Setembro aí está: fruto dourado.
Vivi meia tarde bem vivida: lentas e preciosas horas de rearrumação da biblioteca, em casa. Livros que já nem me lembrava de ter, coisas muito antigas como um fascículo mensário da I Guerra Mundial. O que tenho, de Julho de 1918, é uma riqueza de prosa e uma fortuna de imagens. Publicado na altura em que a refrega se virava contra os Alemães, é um fascículo revivificador de gosto pela História. Também encontrei um Cisco Kid, desenhado e contado pelo grande mestre argentino Jose Luis Salinas (1908-1985). Horas boas. No pátio lateral, depois, fiz festas à gata, rapariga esparramada ao Sol, seus olhos esmeraldados pela luz inteira da tarde.
Por capas e lombadas, a enumerável maravilha inumerável de autores e títulos: London, O Apelo da Selva; Montalbán, Os Alegres Rapazes de Atzvara; Eliot, The Waste Land; Shepard, O Verdadeiro Oeste; Oliveira, Uma Abelha na Chuva; Herculano, O Bobo; Tomeo, O Castelo das Cartas Cifradas; Nemésio, Quatro Prisões Debaixo de Armas; Anderson, Winesburg, Ohio; Rendell, Corações de Pedra; Le Carré, A Paz Insuportável; Beckett, The Complete Plays; Stendhal, Maudit Soit l’Amour; Zola, L’Assomoir; Simenon, L’Âne Rouge; Guareshi, O Camarada D. Camilo; Sciascia, O Contexto; Woolf, As Ondas; Cortázar, Rayuela; Veríssimo, O Analista de Bagé. Maravilhas: como um poema intocável.
Olho a biblioteca – e distingo dela, perfeitamente, o rumor das vozes, a ânsia dividida entre chegada e partida, a descomunal solidão dos colectivos, os retratos tirados a preto à noite branca de cada ser, cada um com seu nada que tudo vale, a vida e a morte e a vida.
Em torno, o silêncio da vila favorece o rumor dos livros. Por ter sido árvore, todo o papel estremece à presença vozeada do vento sitiando a casa, raspando as vidraças (esta imagem de ramos raspando vidraças, herdei-a de Nemésio escrevendo sobre Camilo com Ana Plácido numa edição didáctica do Amor de Perdição).
Camilo, Eça, Aquilino; Castro, Vergílio, Bragança; Yourcenar, Flaubert, Rimbaud; Greene, Maugham, Le Carré; Fitzgerald, Faulkner, Dos Passos; Calvino, Alvaro, Soldati; Dostoievsky, Tolstoi, Tchekov; Pasolini, Mishima, Kawabata; Brecht, Mann, Doblin; Rodoreda, Mendoza, Molina; Camões, Pessoa, Belo. Uma só vida.
Na rua, escalando o ar, penso na casa, no quarto onde o corpo alonga a imitação da morte antecessora de todo o renascimento, na divisão de louça onde a merda e o sabão partilham a pele, na cozinha repartida pela voracidade do fogo e pela memória do frio, na sala suspensa pela luz da varanda virada ao vale, na habitação dos livros onde as estantes novas albergam o sono acordado de mortos e vivos.
E sustentando tudo isto (o pensamento na casa), o pensamento da casa) está a música: Grieg, Baker, Rollins; Nougaro, Brel, Ferré; Verdi, Strauss, Paredes; Serrat, Andion, Stratos; Page, Plant, Lord; Marceneiro, Hermínia, Amália.
A música desemaranha sendeiros, abre azinhagas na luz verde, instaura aquários para que a pessoa ouvinte volte ao primacial estatuto de peixe uterino. Águia feita de ar, água feita de ar – a música repõe a cristalaria sideral ao alcance humano, nos quartos sós das pensões como nos salões multitudinários da euforia imperial, na savana como na nocturna viagem de carro a caminho de alguém amante e de ninguém.
Pela têvê da pastelaria, o United e o Sunderland vão empatando a zero no sábado inglês. Experimento ler os nomes dos jogadores como se de autores: Yorke, Nosworthy, McShane, Eagles (mas este é música de hotel californiano), Chopra, Wallace, Rio, Scholes, Brown (padre chestertoniano: também dá), Collins, Saha. A brincadeira dá este resultado: jogo a alinhar duas equipas de autores: Vivos contra Mortos. De camisola roxa e calção negro, os Mortos: Cervantes à baliza; Codax, Vian, Capote e McCullers; Cesário, Tolentino e Strindberg; Caeiro, Moravia e Fo. De camisola amarela e calção verde, os Vivos: entre os postes, Marías; McEwan, Gräss, Myrdal e Roth; Bernhard, Osório, Rivas e Carvalho; Fuentes e Carpentier. De modo que em 4x3x3 os Mortos (sempre mais agressivos, mais acutilantes, mais vivos) e em 4x4x2 os Vivos (mais resguardados sempre, mais inquietos, mais tácticos).
A evidente criancice deste jogo repousa-me o humor. Ninguém vive facilmente, ao contrário do que por aí se morre. Não vivo com facilidade. Vivo, até, contrariado, digo-o bem. Mas às vezes a mais madura das minhas idades retorna em força – e ela chama-se Infância, esse país de antes dos livros e das amarguras paginadas. Essa pátria de cores no país a pretibranco que era o meu, o nosso.
Recordo a mortalidade infantil da minha infância. À época, ainda a permilagem não era a maquilhagem estatística do pouco. As crianças morriam muito, na minha infância. Recordo a segundo e última filha do senhor Veríssimo, dois dos três filhos do senhor Morais, o segundo e último do meu primo Mário Chato, alguns dos Cucos e a irmã do Augusto do Bairro de Nª Sª de Fátima. Se só recordo a morte? Não. A vida também me recorda.
Recordo a Fatinha e a Mila do senhor Zé Claro, padeiro da terra e nosso vizinho. Eram meninas. Brincávamos nas escadas do prédio, brincávamos no quintal, brincávamos no monte. Não o sabíamos (felizmente) então, mas era no Tempo que brincávamos: pois que éramos miniaturas do futuro. Havia um cão entre nós – o mais inteligente e mais bravo cão do mundo, de seu nome Pinóquio. O cão pertencia à família Claro, mas quando pais e filhas se mudaram da Lameira do Saramago (hoje Rua 1º de Maio) para a Rua 4 de Julho, o Pinóquio ficou connosco. Depois, aconteceu mais tempo – e o cão morreu de velho. Não morreu connosco: sentindo o animal a autoridade do último apelo, foi ter sozinho à porta da padaria, no alto da aldeia-bairro, e entregou-se ao primeiro dono pela vez última. Tenho uma fotografia em que ele vive: lindo e lúcido como uma estrela. É no pátio, estou com a Didi, menina vizinha também, irmã do Tito e filha do senhor Morais e da D. Odete.
O meu problema é simples: tive uma infância feliz. Tão feliz, que a minha literatura de adulto é um embuste. Uma falsidade. Uma falsa idade. Uma salsa. E uma coxa valsa. Deveria ter seguido os preceitos, cumprido os requisitos, mantido a profissão de mestrescola de adolescentes. Não deveria nunca ter vindo para isto: para coleccionador de falsidades literárias e de folhas verdadeiras que umas às outras se não conhecem por causas de erros meus, má fortuna e aguardente.
Assim, o suicídio ritual de Mishima e o assassinato obsceno de Pasolini concorrem-me com a morte à facada do Paulo Casimiro, no prédio da Cabeleireira pelo filho da Cabeleireira, e com o número taxativo de crianças defuntas da minha infância. A vida também me concorre.
A vida também me ocorre – de longe (no Nunca, nome favorito do Tempo) me acorrem a casa, para Sempre, os senhores e as senhoras formiguinhas pretas em arena de papel: os autores, as autoras: a rumorosa gente. Tudo isto tem explicação: nos anos 70 do século passado, um gajo chamado José Antunes Ribeiro motivou a edição de um livro chamado O Poeta Faz-se aos 10 Anos. A editora para que trabalhava esse senhor ainda existe (o senhor também, aliás): Assírio & Alvim. O livro em situação foi coligido por uma professora chamada Maria Alberta Meneres. Era a colecção pedagógica de trabalhos poéticos de crianças alunas dela. Enormes crianças, grande livro, magna docente: o livro é uma maravilha. Ela levou-os a transgredir a linguagem dita objectiva do dia-a-dia. Ou assim: potenciou o natural de cada criança, legalizando-lhes a metaforização e convocando-lhes a efabulação. Então, um menino escreve (digo de cor; de coração, portanto):


O Amor é
um pássaro verde
no alto azul
da madrugada.


Porra: eu era da idade dos meninos e das meninas de Maria Alberta Meneres e de José Antunes Ribeiro. A minha vida futura (isto, agora) foi fixada, a calendário e esquadra, na leitura desse livro inesquecível e oblongo. A 5 de Novembro de 1977, na página infanto-juvenil de um jornal chamado o diário, que um tal Oriam (Mário Castrim) pulsava, vi publicado um poema próprio chamado As Quatro Estações. Era eu armado em Vivaldi neo-realista. A desimportância e a efemeridade disto sinonimizavam a minha vida e a minha morte – mas ficam escritas, que até a brincar gosto de armar ao sério.
Depois, vieram a sexualidade, o emprego, as responsabilidades e a decadência nacional, na linha da da europeia, do Benfica. Em Maio de 1981, recolhi do monte um pardal pequenino que não tinha cauda-leme. Vivemos juntos seis meses, até ao dia primeiro de Novembro: o meu irmão Fernando deixou aberta a porta do quarto onde hoje vive sozinho – e um gato matou-me o pássaro da minha vida. Hoje, tenho uma gata e só aceito pássaros azuis por escrito, que o meu era castanho e preto e branco e lindo como uma criança das da permilagem, essa doença que levou tantas no ocaso do sacrossalazarismo.
Isto, é, natural e inevitavelmente, a solidão. Já tenho a velhice toda pronta: sei do que vou lembrar-me quando de tudo o mais me esquecer: um pássaro, um cão.


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Pelo País esvaziado (até, ou sobretudo, de mentalidade, até de idade mental) campeiam os imbecis, os vãos, os burros e os obtusos. As autarquias são democráticas como o pão dos cagadónaldes é pão. As caixeirinhas de hipermercado floribellam com condes imaginários que serviçam nas obras. Os doutores arregimentados pelo regime doutoral seguem os ditames do futuro Presidente da República, Aquele que não Dorme para Ler Livros, o arregalado que não vale um peido e fala como uma bufa. No Algarve, só criancinhas inglesas é que desaparecem, que as outras estão todas na Madeira a fazer de pupilas do Senhor Reitor. E o velho Eça, vivo em minha casa antes da enterocolite (que lhe diagnosticou postumamente o doutor Gaspar Simões) que o levará em vão a procurar o milagre suíço da neve, do leite e do oxigénio, ri-se desta merda toda porque o cu dele nunca aceitou agrafos de alma.
Mais para além, porém, mais para canto, entretanto, ocorre-me a possibilidade de tudo cumprir ainda o ideal zénite que levou ao nadir dos dinossauros e do tigre-de-dentes-de-sabre: a Extinção. Está bem, está correcto assim. Digo: se nestas mesmas páginas recusáveis e irredimíveis evoquei o funeral – de um velho em Antuzede cujo nome me não ficou –, que coisa, afinal, fica? Os publicados? A Woolf encheu de pedras os bolsos e afogou-se. O Vasco Graça Moura conhece as repartições todas. O Eduardo Prado Coelho estoirou como a jibóia queesmoía e deixou de esmoer, como aquele padre de inícios d’O Crime do Padre Amaro, que isto de escrever em pastelarias tem que se lhe diga – e eu digo (em blog, que é modernaço e fica bem para abrilhantar a punheta, cuja não é sempre com mulheres). Parece má-língua portugalóide: e é-a. Sabeis, blogueitores, a que coisa assisti eu no quasoutono de 1996? A isto que segue.

Era em Lisboa, no Teatro da Cornucópia. Era a antestreia da representação d’A Margem da Alegria, poema de dois mil e tantos versos dum tal Ruy Belo (de cor: 1933-1978). Estavam lá os tachos da Cul(atr)ura e o estagiário do jornaleirismo. Eu fazia deste último. Falei com Teresa, a viúva do Autor. Falei com o cornucópio Director/Encenador/Luís Miguel Cintra. Falei com Nuno Júdice, tendo-o confundido, aliás, com Gastão Cruz, mas depois pedi-lhe escusa. E falei com o senhor Eduardo. Curiosidade: o dito (hoje defunto) ficou exactamente na cadeira da plateia à minha frente. Isto é a verdade-verdadinha: adormeceu passado um bocado, a peça/oratória era maravilhosa, dos versos à representação, mas qual, adormeceu como uma veia lenta, pousado no próprio lípido, um nenúfar de banha estimulado ao contrário pela contraluz e, enfim, pelo teatro. Vi-o dormir, ouvi-lhe o doutorado ressonar – e pensei no meu país sem maiúscula. E disse para mim – e cumpro: de coelhos em prados, só o Jacinto, que o resto nem sinto. Enfim, que a morte lhe seja mole como a vida lhe terá sido. Isso – e o Mário Soares a fazer de resistente nas horas vagas do Manuel Alegre, esse grande Torga-C (o original já fazia de B q.b.).

Ou então, para que um rio se transtorne correndo de jusante a montante, Dinis Machado. O homem de Molero. Esse livro que Óscar Lopes, tão bem, 25dabrilizou na Literatura Portuguesa: e mais o Molero só saiu em 1977. Não, nada a ver com as concessões solipsistas de Eugénio de Andrade. Não, nada a ver com a umbilical comichão do Torga otorrinomontano. Não, nada a ver, enfim, com os sonâmbulos chupistas. Nada, enfim, com a pulhice macrolisboeta do país pequenino todo, sobretudo o dos livros, que o outro país não me interessa nem este tremocinho. Tantos circo-instantes, carago, porra. E não, também nada a ver com o Porto, que nisto de Literatura entra mais em casas de putas pagas a chá de rolha para arbítrios-não-livres de futebolanço. E muito menos a Coimbra-coimbrinha dos sucedâneos torgais. (Mais a ver com Setúbal, onde o MM Bocage fez a cama a Luiz Pacheco por vintemérréis).
Safôda, digo eu – e digo bem.


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Setembro aqui está: um fruto vivo, de ouro, polpa de prata dando a noite. Na montanha, as estrelas sobem as penedias. E pássaros azuis consumam a noite, alongado o corpo, gato, num dos quartos da casa.


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Não faz a vida mais do que dela a obrigação,
mantendo-me vivo enquanto mais nada não.
Colectores de pasta de fígado em colherinhas,
frequentadores somos de circunstâncias comezinhas.

Átrios de hotel, sanitários de tasquinhas
– tudo nos socorre em recomicções mais ligeirinhas.
Somos Portugueses camonipessoanos
(e até, más-línguas dizem, queirozianos)
andamos na bamba corda ingrandecidos.

(que isto é mistura de agrad’aparecidos,
cotões do bolso embolorecidos,
filhos-da-puta malparidos).

Resto é contrato: faço-não-faço,
pagas-não-pagas-um-bagaço,
Infante e coisa, Camões e tal.

Mais a Europa prà nossa tropa,
ter jeito e peito prà cachopa,
maizeuropa e pretugal.



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Se voltares a casa, volta com a tua idade.
Não disfarces de preto cartas vermelhas.
És irmão morto, daí que a qualidade
da volta pode, no que semelhas,

enganar os pobres (os que ficaram)
sem ti, sem coisas que ficar
– que pode o pobre, p’ra s’aguentar,
inventar vidas que não vingaram.

A tua vida. A tua morte. Nessa manhã,
facturas houve não descontadas,
que a vida é tudos e é nadas

que contam zeros, nadas e tudos.
Andamos de ti tristes, sisudos,
por idosas casas, tudos e nadas.

3 comentários:

Manuel da Mata disse...

Acho que conheço a malta quase toda. Uma vida inteira também a folheá-los e a lê-los. E a ouvi-los.
"Safôda"!

ovoodacoruja disse...

Caro Daniel,

Obrigado pela referência ao trabalho do jovem editor...ao tempo!
São coisas destas... que nos ajudam a continuar!
Um forte abraço.

LM, paris disse...

bonsoir daniel,
pois muitas coisas dessas vivi também, au féminin, no feminino. Diferentesmente.
" Tenho a velhice jà pronta"...o passaro, ao cao, lindo, lindo.
Pas d'accord sur Eugénio, sur Torga, lui, forever.Pas grave.
beijinhos de paris.

Canzoada Assaltante