15/12/2006

Uma Catedral na Planície - história 40 do Anoitecer ao Tom Dela

1
A planície não permitia supor qualquer coisa tão alta e tão humana como uma catedral. E no entanto havia uma catedral na planície. Não existia qualquer casario em volta. Era uma vez uma planície. Era uma vez uma catedral.

2
Os especialistas não conseguem concordar uns com os outros. Uns – dizem que a catedral foi mesquita. Outros – que a catedral foi sempre sé. Eu não sou especialista, mas sei a história – até porque a escrevi.

3
Antes de haver catedral, havia a planície. Era um ermo total totalmente enxuto pela fricção dos ventos mais cansados do hemisfério. Os ventos volteavam a dura erva silvestre. As pedras voltavam a cabeça. A Lua acamava-se em banha argêntea. E o Sol torrava de frio aquela solidão toda.

4
Antes de haver catedral, houve casebre. Dentro do casebre, a mulher extirpava açúcar e álcool às bagas espontâneas da terra. Fora do casebre, o homem pastoreava os outros filhos de Deus – cabras, ovelhas, cães e corvos. Corvos, cães, ovelhas, cabras e pastor diziam do silêncio palavra alguma.

5
Um dia, a mulher ficou muito doente. Deixou de falar. O homem pegou nela em peso, deitou-a na cama e saiu de casa. Depois, começou a acumular pedras para a catedral.

6
Quando a noite chegava, o homem fervia leite e dava-o, colher a colher, à boca da silenciosa. Enquanto a alimentava, ia-lhe contando da construção. O homem reconhecia que se tratava de uma obra tosca. “Mas vai ficar como deve ser” – garantia ele com os olhos fixos nos outros olhos baços.

7
Chegou a manhã em que só faltava, lá no topo, colocar a cruz. Havia um brilho duro nos olhos do homem. Também havia muito cansaço no corpo dele. Quem já construiu sozinho uma catedral, sabe do que estou a falar.

8
O homem colocou a cruz no topo da catedral, desceu, afastou-se uma centena de metros e contemplou o trabalho – era uma catedral devotada aos deuses da solidão. Os corvos foram os primeiros fiéis, lá em cima, adejando como tinta permanente num caderno branco.

9
Em casa, o homem encontrou ninguém. A cama vazia ampliava o desamparo do construtor. Sentou-se à mesa, bebeu leite e acendeu o lume. Quando as chamas subiram, pegou num toro e incendiou sem pressa e com método os quatro cantos do casebre.

10
A planície está viva de ventos corredores. Os descendentes das cabras, das ovelhas, dos cães e dos corvos habitam a catedral. De vez em quando, uma excursão de japoneses vem fotografar a obra do homem que, como um deus apeado, me deu esta história – pedra sobre pedra.



Caramulo, noites de 8 e 9 de Dezembro de 2006

2 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

jura

Manuel da Mata disse...

Prefiro as góticas às barrocas; todavia, amo todas as catedrais!
Eu sei quão difícil é construir catedrais.
E até e/ou sobretudo poemas!...
Um abraço, ó rouxinol agora menos presente!

Canzoada Assaltante