História 34
LAURINDA À PORTUGUESA
1
Já lá vai a juventude
de mãos dadas à saúde
já não volta a primavera
só bilhete de partida
não há volta só há ida
toda a sala é de espera.
Nas paredes há retratos
roem os cantos os ratos
(quem fechou a porta à chave?)
Laurindinha entristeceu
não sab’ ela mas sei eu
só há céu se houver ave.
2
Quando a chuva dá no mar
vai-se o que é doce salgar
bate no tecto dos peixes
quinta-feira à uma hora
aparece não vás embora
aparece e não me deixes.
A vida é breve é breve a vila
e eu tenho um jeito de senti-la
que não cessa nem com polícia
o corpo é curto vão cabedal
todo o mundo é Portugal
digo-to eu sem malícia.
3
Quem quiser fazer as pazes
traga o natal mais uns cabazes
vinho do porto e bacalhau
as manilhas não são ases
somos todos bons rapazes
nenhum bom rapaz é mau.
Ó país das laurindinhas
das amoras madurinhas
da tristeza oficial
quem de ti nasce nasce só
ao sul da chuva solidó
e tod’ o mundo é Portugal.
4
Não tens lareira tens TV
quem te viu e que te vê
tele-ovelha do Brasil
Cabora Bassa Moçambique
ai que me dá um chilique
quem de ti nasce nasce senil.
Por amor falo tu não duvides
quero tremoços e pevides
vai-se o que é doce amargar
se depois faltar saúde
também falt’ a juventude
nem nós nos vamos chatear.
5
Diz-me tu ó cara linda
qu’ és portuguesa e Laurinda
se a Lua é tua ou não
ao balcão eu desejei
beijos que nunca beijei
e já não beijo ai isso não.
Jogas ao euromilhões
tostões são revoluções
são cruzeiros mares do sul
o dinheiro é uma avezita
que torna a vida bonita
voando dólar p’lo azul.
6
Se tens mortos no armário
tira Cristo do Calvário
sai à rua desentristece
há manhãs e raparigas
não embarques em cantigas
e quinta-feira aparece.
Não me deixes falar só
ré fá si sol si lá dó
não me deixes portuguesa
teu carinho merceeiro
é p’ra mim natal inteiro
diss’ eu tenho bem certeza.
7
Ó Laurinda linda e feia
não deixes a coisa por meia
como se for’ a deitar fora
não esqueças: quinta à uma
como tu não há nenhuma
e eu não quero ir embora.
A gente somos – diz a gente
falando mal e porcamente
e sem querer falar mais bem
Tavira Beja Ovar Sesimbra
Porto Lisboa e Coimbra
e Santiago do Cacém.
8
Não amo a vida o País sim
grelha-se em banha o rim
frige a cebola rucita
e tu Laurinda vai por mim
não há volta só há fim
meia volta cadelita.
Diz o pobre ao remendado
tusso muito estou cansado
como é qu’ eu hei-de fazer?
’ão faças nada, deix’ andar
que o turismo há-de dar
felicidade de viver.
9
Três homens teve Portugal
três mães teve por igual
que alguém tinha d’ os fazer
Camões, Eça e Pessoa
afinal a terra é boa
desde que se saiba ler.
Luiz de Camões ó Laurindinha
drogava-se com sal d’ água marinha
e Queiroz era nós a desejar
que Pessoa fosse só gente
apática indiferente
a impérios d’ ultramar.
10
Posto isto disse tudo
vou ser cego, surdo e mudo
muda tu o teu balcão
ó Laurinda feia e linda
a história não é finda
sem que te mostr’ o coração.
Coração é bomba d’ água
encarnad’ aérea trago-a
suspensa chuva marinha
já lá vai a juventude
de mãos dadas à saúde
vai-se a vida que era minha.
Caramulo, tarde de 3 de Novembro de 2006
LAURINDA À PORTUGUESA
1
Já lá vai a juventude
de mãos dadas à saúde
já não volta a primavera
só bilhete de partida
não há volta só há ida
toda a sala é de espera.
Nas paredes há retratos
roem os cantos os ratos
(quem fechou a porta à chave?)
Laurindinha entristeceu
não sab’ ela mas sei eu
só há céu se houver ave.
2
Quando a chuva dá no mar
vai-se o que é doce salgar
bate no tecto dos peixes
quinta-feira à uma hora
aparece não vás embora
aparece e não me deixes.
A vida é breve é breve a vila
e eu tenho um jeito de senti-la
que não cessa nem com polícia
o corpo é curto vão cabedal
todo o mundo é Portugal
digo-to eu sem malícia.
3
Quem quiser fazer as pazes
traga o natal mais uns cabazes
vinho do porto e bacalhau
as manilhas não são ases
somos todos bons rapazes
nenhum bom rapaz é mau.
Ó país das laurindinhas
das amoras madurinhas
da tristeza oficial
quem de ti nasce nasce só
ao sul da chuva solidó
e tod’ o mundo é Portugal.
4
Não tens lareira tens TV
quem te viu e que te vê
tele-ovelha do Brasil
Cabora Bassa Moçambique
ai que me dá um chilique
quem de ti nasce nasce senil.
Por amor falo tu não duvides
quero tremoços e pevides
vai-se o que é doce amargar
se depois faltar saúde
também falt’ a juventude
nem nós nos vamos chatear.
5
Diz-me tu ó cara linda
qu’ és portuguesa e Laurinda
se a Lua é tua ou não
ao balcão eu desejei
beijos que nunca beijei
e já não beijo ai isso não.
Jogas ao euromilhões
tostões são revoluções
são cruzeiros mares do sul
o dinheiro é uma avezita
que torna a vida bonita
voando dólar p’lo azul.
6
Se tens mortos no armário
tira Cristo do Calvário
sai à rua desentristece
há manhãs e raparigas
não embarques em cantigas
e quinta-feira aparece.
Não me deixes falar só
ré fá si sol si lá dó
não me deixes portuguesa
teu carinho merceeiro
é p’ra mim natal inteiro
diss’ eu tenho bem certeza.
7
Ó Laurinda linda e feia
não deixes a coisa por meia
como se for’ a deitar fora
não esqueças: quinta à uma
como tu não há nenhuma
e eu não quero ir embora.
A gente somos – diz a gente
falando mal e porcamente
e sem querer falar mais bem
Tavira Beja Ovar Sesimbra
Porto Lisboa e Coimbra
e Santiago do Cacém.
8
Não amo a vida o País sim
grelha-se em banha o rim
frige a cebola rucita
e tu Laurinda vai por mim
não há volta só há fim
meia volta cadelita.
Diz o pobre ao remendado
tusso muito estou cansado
como é qu’ eu hei-de fazer?
’ão faças nada, deix’ andar
que o turismo há-de dar
felicidade de viver.
9
Três homens teve Portugal
três mães teve por igual
que alguém tinha d’ os fazer
Camões, Eça e Pessoa
afinal a terra é boa
desde que se saiba ler.
Luiz de Camões ó Laurindinha
drogava-se com sal d’ água marinha
e Queiroz era nós a desejar
que Pessoa fosse só gente
apática indiferente
a impérios d’ ultramar.
10
Posto isto disse tudo
vou ser cego, surdo e mudo
muda tu o teu balcão
ó Laurinda feia e linda
a história não é finda
sem que te mostr’ o coração.
Coração é bomba d’ água
encarnad’ aérea trago-a
suspensa chuva marinha
já lá vai a juventude
de mãos dadas à saúde
vai-se a vida que era minha.
Caramulo, tarde de 3 de Novembro de 2006
História 36
A VINHA DO FARIA
1
Nenhum de nós conheceu o Faria. Devia ter sido um senhor noutro tempo, mas a morte e o esquecimento, às vezes, retiram a senhoria ao nome. Era uma vinha. Chamava-se “A Vinha do Faria”. E já nem vinha era. Era só uma terra no alto do mais pequeno dos dois montes da aldeia.
2
Nem sequer a aldeia é já aldeia. Agora chamam-lhe bairro. Quando uma aldeia se torna bairro, o nome verdadeiro é “dormitório”. Blocos de apartamentos. Andares – da cor do nevoeiro. E vidas económicas – da cor da economia do nevoeiro.
3
Uma vez, os gajos da parte de cima da aldeia fizeram um circo na Vinha do Faria. Era o circo mais pobre do mundo – os artistas só tinham 8, 9, dez anos. Mas o filho da dona da mercearia era o dono do circo. E quis dez tostões por entrada. Eu não tinha. Mesmo que tivesse. Não entrei.
4
O filho da viúva – disseram-me depois que fez trapézio. Pendurou-se de uma corda pela boca dos joelhos. O mais pobre fez de palhaço idem. O cão mijou quando lhe mandaram. Eu não vi, mas quem tinha dez tostões depois contou-me.
5
Isto estava assim tudo muito bem. Mas depois começaram os funerais. Os velhos desapareciam como velas magras. Mas as crianças, não. As crianças eram brutais quando morriam. No exacto início dos anos 70 do século passado, as crianças ainda morriam só por serem crianças. A doença que as levava era a permilagem.
6
Memória rima com história, mas não tem nada a ver com ela. A minha memória e a minha história destroem-se mutuamente as próprias verosimilhanças. Quando havia Vinha do Faria, a minha Mãe era nova. Quereis maior mentira do que esta?
7
No dia 1 de Janeiro de 1974, organizaram corridas para rapazes na Vinha do Faria. Não havia equipamentos nem sapatilhas. Havia ar, terra, fogo e água. Corri na terra ao ar. Corri como o fogo. Suei água. Depois, construíram apartamentos no lugar do circo.
8
Existem alguns recantos da Vinha do Faria que o engenheiro e o dono da obra não puderam, ou não quiseram, obliterar. Aí, cresce ainda o mesmo panasco e soçobra, sobreira, sobranceira, a mesma oliveira. Aquela de onde se pendurou pela boca dos joelhos o filho da viúva.
9
Num destes natais adultos (e portanto já natal nenhum, adulteração só), fui levado a um dos apartamentos da Vinha do Faria. Éramos três daquele tempo – e deste também. Bebemos uma garrafa. Eu lembrei o circo. Perguntaram-me:
– Qual circo?
10
Ainda é viva, a viúva mãe do trapezista. A mercearia tornou-se snack-bar, como bairro se tornou a aldeia. A minha memória tornou-se história. Os prédios – a que ainda chamo novos – precisam de pintura. O rapaz do apartamento da garrafa natalícia jogou no União de Coimbra. Divorciou-se entretanto. Julgo que vendeu o apartamento. Eu não vi. Mas nem precisei de dez tostões para contar a história como se a tivesse visto com estes olhos que a Vinha do Faria há-de comer.
Caramulo, tarde de 6 de Novembro de 2006
A VINHA DO FARIA
1
Nenhum de nós conheceu o Faria. Devia ter sido um senhor noutro tempo, mas a morte e o esquecimento, às vezes, retiram a senhoria ao nome. Era uma vinha. Chamava-se “A Vinha do Faria”. E já nem vinha era. Era só uma terra no alto do mais pequeno dos dois montes da aldeia.
2
Nem sequer a aldeia é já aldeia. Agora chamam-lhe bairro. Quando uma aldeia se torna bairro, o nome verdadeiro é “dormitório”. Blocos de apartamentos. Andares – da cor do nevoeiro. E vidas económicas – da cor da economia do nevoeiro.
3
Uma vez, os gajos da parte de cima da aldeia fizeram um circo na Vinha do Faria. Era o circo mais pobre do mundo – os artistas só tinham 8, 9, dez anos. Mas o filho da dona da mercearia era o dono do circo. E quis dez tostões por entrada. Eu não tinha. Mesmo que tivesse. Não entrei.
4
O filho da viúva – disseram-me depois que fez trapézio. Pendurou-se de uma corda pela boca dos joelhos. O mais pobre fez de palhaço idem. O cão mijou quando lhe mandaram. Eu não vi, mas quem tinha dez tostões depois contou-me.
5
Isto estava assim tudo muito bem. Mas depois começaram os funerais. Os velhos desapareciam como velas magras. Mas as crianças, não. As crianças eram brutais quando morriam. No exacto início dos anos 70 do século passado, as crianças ainda morriam só por serem crianças. A doença que as levava era a permilagem.
6
Memória rima com história, mas não tem nada a ver com ela. A minha memória e a minha história destroem-se mutuamente as próprias verosimilhanças. Quando havia Vinha do Faria, a minha Mãe era nova. Quereis maior mentira do que esta?
7
No dia 1 de Janeiro de 1974, organizaram corridas para rapazes na Vinha do Faria. Não havia equipamentos nem sapatilhas. Havia ar, terra, fogo e água. Corri na terra ao ar. Corri como o fogo. Suei água. Depois, construíram apartamentos no lugar do circo.
8
Existem alguns recantos da Vinha do Faria que o engenheiro e o dono da obra não puderam, ou não quiseram, obliterar. Aí, cresce ainda o mesmo panasco e soçobra, sobreira, sobranceira, a mesma oliveira. Aquela de onde se pendurou pela boca dos joelhos o filho da viúva.
9
Num destes natais adultos (e portanto já natal nenhum, adulteração só), fui levado a um dos apartamentos da Vinha do Faria. Éramos três daquele tempo – e deste também. Bebemos uma garrafa. Eu lembrei o circo. Perguntaram-me:
– Qual circo?
10
Ainda é viva, a viúva mãe do trapezista. A mercearia tornou-se snack-bar, como bairro se tornou a aldeia. A minha memória tornou-se história. Os prédios – a que ainda chamo novos – precisam de pintura. O rapaz do apartamento da garrafa natalícia jogou no União de Coimbra. Divorciou-se entretanto. Julgo que vendeu o apartamento. Eu não vi. Mas nem precisei de dez tostões para contar a história como se a tivesse visto com estes olhos que a Vinha do Faria há-de comer.
Caramulo, tarde de 6 de Novembro de 2006
História 37
BELEZA NEGRA (Black Beauty)
1
Talvez as coisas tivessem sido muito diferentes, entre outrora e agora, se o meu Pai me tivesse comprado o cavalo negro que, aliás, nunca lhe pedi. As meninas gostam de póneis. Os meninos tornam-se rapazes quando desejam cavalos. Eu desejei aquele cavalo negro da televisão. Só que não fui capaz de o pedir ao meu Pai. E o meu Pai não foi capaz de mo dar porque há um momento, uma fronteira, em que pais e filhos deixam de conhecer os mútuos desejos. Trata-se de uma tragédia tão natural como inelutável.
2
Na madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983, nevou em Coimbra como nunca mais. Ainda a luz do dia não era luz (nem o dia, dia), quando o meu Pai me acordou com um estremeção da mão esquerda para que eu visse o que lhe estava na mão direita.
– Ó filho, anda ver o que está a cair lá fora!
Desoxidei o ferro de um só olho e vi a neve na mão dele – a neve na mão dele! Levantei-me e fomos os dois lá fora.
3
Lá fora, era a eternidade que nos esperava. As pensativas oliveiras pareciam noivas de si mesmas. O monte (o maior dos dois da aldeia) era todo torrão-de-alicante. O ar tinha endurecido como frágil e era frágil como vidro. Senti outro estremeção. Como a neve, o meu Pai tinha desaparecido. Até hoje.
4
Fiz as malas, disse adeus à minha Mãe, e desertei para a cidade. Tornei-me num acumulador de cidades. Em Peniche, fui derrotado como um marinheiro em terra numa luta de bar. Na Figueira da Foz, o mar era suicida e infiel. Em Pombal, as mulheres davam sopa e albergue. Em Lisboa, o rio separava toda a gente de toda a gente. Em Matosinhos, a biblioteca cheirava a café-com-leite e a pão com manteiga. Em Viseu, as pombas destruíam os próprios pés com jactos suinícolas.
5
Antes da madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983, o meu desejo concentrava-se no cavalo negro. Chegou a madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983 – e o meu Pai apresentou-me a neve. Cá fora, junto ao pessegueiro de uma outra destas histórias, entreguei-me à visão do cavalo negro na neve.
6
Não fiquei à espera que a neve fosse para sempre. Não é condição dela. Nem dele. O corpo tinha crescido para além dos ângulos afinal restritos do pátio das traseiras. As meninas gostavam de póneis. E os póneis eram rapazes. E eu era um rapaz.
7
A primeira coisa que apanhei não foi uma rapariga. Foi o autocarro. Era Outubro. Era em 1986. Em Peniche, a mulher que arrendava o prédio apresentou-me a um quarto decente e solitário como um voto de castidade em eleições genitais. No quarto vizinho, um rapaz negro e delicado dormia o cansaço de futebolista do Ferrel, aquela terra da canção anti-nuclear do Fausto.
8
De repente, devagar, é outra coisa: a vida toda, menos a que falta. O que falta não é desejar. Todos desejamos algo ou alguém. Ou algo de alguém. Eu costumo desejar boas-noites nos cafés quando é de noite. E bons-dias nas repartições quando ainda ninguém almoçou. O que falta não é, de facto, desejar. É pedir. O que falta é saber pedir.
9
A neve não é coisa que se peça. Por exemplo, a neve. 1983 não é coisa que se peça. Por exemplo, 1983. Entre toda a gente envolvida nisto, quem não chegou alguma vez à própria mãe e disse (?):
– Já fiz as malas. Estão ali as cidades na extrema do autocarro.
10
O cavalo negro existe no meu café terminal. É um bufete de Associação Recreativa, Desportiva e Cultural. Tenho quase a idade do meu Pai quando nevou. Isto não é uma cidade. É uma aldeia sem universitários nem creches. É um apeadeiro que não segue. É uma história. No bufete da Associação, jogamos xadrez. O secretário da Junta é o meu adversário. Ele joga com as brancas e avança o peão de rei. Eu ouço o conselho da figura junto ao pessegueiro e avanço o cavalo negro.
Caramulo, tarde de 8 de Novembro de 2006
BELEZA NEGRA (Black Beauty)
1
Talvez as coisas tivessem sido muito diferentes, entre outrora e agora, se o meu Pai me tivesse comprado o cavalo negro que, aliás, nunca lhe pedi. As meninas gostam de póneis. Os meninos tornam-se rapazes quando desejam cavalos. Eu desejei aquele cavalo negro da televisão. Só que não fui capaz de o pedir ao meu Pai. E o meu Pai não foi capaz de mo dar porque há um momento, uma fronteira, em que pais e filhos deixam de conhecer os mútuos desejos. Trata-se de uma tragédia tão natural como inelutável.
2
Na madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983, nevou em Coimbra como nunca mais. Ainda a luz do dia não era luz (nem o dia, dia), quando o meu Pai me acordou com um estremeção da mão esquerda para que eu visse o que lhe estava na mão direita.
– Ó filho, anda ver o que está a cair lá fora!
Desoxidei o ferro de um só olho e vi a neve na mão dele – a neve na mão dele! Levantei-me e fomos os dois lá fora.
3
Lá fora, era a eternidade que nos esperava. As pensativas oliveiras pareciam noivas de si mesmas. O monte (o maior dos dois da aldeia) era todo torrão-de-alicante. O ar tinha endurecido como frágil e era frágil como vidro. Senti outro estremeção. Como a neve, o meu Pai tinha desaparecido. Até hoje.
4
Fiz as malas, disse adeus à minha Mãe, e desertei para a cidade. Tornei-me num acumulador de cidades. Em Peniche, fui derrotado como um marinheiro em terra numa luta de bar. Na Figueira da Foz, o mar era suicida e infiel. Em Pombal, as mulheres davam sopa e albergue. Em Lisboa, o rio separava toda a gente de toda a gente. Em Matosinhos, a biblioteca cheirava a café-com-leite e a pão com manteiga. Em Viseu, as pombas destruíam os próprios pés com jactos suinícolas.
5
Antes da madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983, o meu desejo concentrava-se no cavalo negro. Chegou a madrugada do dia 11 de Fevereiro de 1983 – e o meu Pai apresentou-me a neve. Cá fora, junto ao pessegueiro de uma outra destas histórias, entreguei-me à visão do cavalo negro na neve.
6
Não fiquei à espera que a neve fosse para sempre. Não é condição dela. Nem dele. O corpo tinha crescido para além dos ângulos afinal restritos do pátio das traseiras. As meninas gostavam de póneis. E os póneis eram rapazes. E eu era um rapaz.
7
A primeira coisa que apanhei não foi uma rapariga. Foi o autocarro. Era Outubro. Era em 1986. Em Peniche, a mulher que arrendava o prédio apresentou-me a um quarto decente e solitário como um voto de castidade em eleições genitais. No quarto vizinho, um rapaz negro e delicado dormia o cansaço de futebolista do Ferrel, aquela terra da canção anti-nuclear do Fausto.
8
De repente, devagar, é outra coisa: a vida toda, menos a que falta. O que falta não é desejar. Todos desejamos algo ou alguém. Ou algo de alguém. Eu costumo desejar boas-noites nos cafés quando é de noite. E bons-dias nas repartições quando ainda ninguém almoçou. O que falta não é, de facto, desejar. É pedir. O que falta é saber pedir.
9
A neve não é coisa que se peça. Por exemplo, a neve. 1983 não é coisa que se peça. Por exemplo, 1983. Entre toda a gente envolvida nisto, quem não chegou alguma vez à própria mãe e disse (?):
– Já fiz as malas. Estão ali as cidades na extrema do autocarro.
10
O cavalo negro existe no meu café terminal. É um bufete de Associação Recreativa, Desportiva e Cultural. Tenho quase a idade do meu Pai quando nevou. Isto não é uma cidade. É uma aldeia sem universitários nem creches. É um apeadeiro que não segue. É uma história. No bufete da Associação, jogamos xadrez. O secretário da Junta é o meu adversário. Ele joga com as brancas e avança o peão de rei. Eu ouço o conselho da figura junto ao pessegueiro e avanço o cavalo negro.
Caramulo, tarde de 8 de Novembro de 2006
História 38
A MALA
1
Eu estava a fumar na varanda. A noite era muito pura. Fazia frio. As estrelas visíveis diminuíam a existência e aumentavam a vida. Um carro vinha descendo a ladeira. Eu já tinha mandado fora o resto do cigarro.
2
Do outro lado da estrada, está o parque das árvores. Alguém atirou um volume pesado e rectangular para a zona das árvores. O carro continuou a descer, depois parecia cego, derivou para a esquerda e foi embater na parede da antiga padaria.
3
Saí logo de casa. Não me dirigi ao carro. Desci a ravina do parque. Era uma mala. Peguei nela e fui guardá-la em casa. Só depois fui ao sítio do desastre.
4
O carro tinha dois mortos. O condutor apresentava um carimbo mortal na testa. O homem do banco de trás tinha uma ferida de bala na cara, logo debaixo do olho esquerdo.
5
A luta tinha sido muito rápida. O homem de trás desceu o vidro e atirou a mala para o parque. O condutor apercebeu-se e alvejou-o com a mesma pistola que o fez perder a direcção do automóvel, primeiro, e, segundo, a vida.
6
Chamei a guarda. Os vizinhos começaram a acudir ao espectáculo. A guarda veio e mandou arredar. Eu disse que tinha acordado com o barulho do impacto. Não falei da mala. A mala é minha.
7
Dentro da mala, há muito dinheiro. Também lá estavam dois sacos de droga, uma pistola e um boletim do euromilhões por preencher. Despejei o conteúdo dos sacos na retrete. Mandei a pistola para dentro do poço.
8
Nunca contei o dinheiro todo. Vou gastando à vontade. Não alterei nada na minha vida. Nem sequer almoço mais vezes fora. Preenchi o boletim do euromilhões e registei-o. Não me saiu nada.
9
Queimei a mala na lareira. O dinheiro está na gaveta, debaixo das camisas. Tenho que chegue para o resto da vida. De manhã, tiro uma nota e vou trabalhar. À noite, ainda tenho a nota. Vou à mercearia e compro coisas para comer. Aos sábados, fico um pouco mais no café.
10
Deixei de fumar. Fechei as portadas da varanda e nunca mais as abri. É possível que o dinheiro aumente a existência e diminua a vida, como as estrelas do euromilhões. Não penso muito nisso. A gaveta das camisas é funda. O poço, também.
Caramulo, tarde de 13 de Novembro de 2006
A MALA
1
Eu estava a fumar na varanda. A noite era muito pura. Fazia frio. As estrelas visíveis diminuíam a existência e aumentavam a vida. Um carro vinha descendo a ladeira. Eu já tinha mandado fora o resto do cigarro.
2
Do outro lado da estrada, está o parque das árvores. Alguém atirou um volume pesado e rectangular para a zona das árvores. O carro continuou a descer, depois parecia cego, derivou para a esquerda e foi embater na parede da antiga padaria.
3
Saí logo de casa. Não me dirigi ao carro. Desci a ravina do parque. Era uma mala. Peguei nela e fui guardá-la em casa. Só depois fui ao sítio do desastre.
4
O carro tinha dois mortos. O condutor apresentava um carimbo mortal na testa. O homem do banco de trás tinha uma ferida de bala na cara, logo debaixo do olho esquerdo.
5
A luta tinha sido muito rápida. O homem de trás desceu o vidro e atirou a mala para o parque. O condutor apercebeu-se e alvejou-o com a mesma pistola que o fez perder a direcção do automóvel, primeiro, e, segundo, a vida.
6
Chamei a guarda. Os vizinhos começaram a acudir ao espectáculo. A guarda veio e mandou arredar. Eu disse que tinha acordado com o barulho do impacto. Não falei da mala. A mala é minha.
7
Dentro da mala, há muito dinheiro. Também lá estavam dois sacos de droga, uma pistola e um boletim do euromilhões por preencher. Despejei o conteúdo dos sacos na retrete. Mandei a pistola para dentro do poço.
8
Nunca contei o dinheiro todo. Vou gastando à vontade. Não alterei nada na minha vida. Nem sequer almoço mais vezes fora. Preenchi o boletim do euromilhões e registei-o. Não me saiu nada.
9
Queimei a mala na lareira. O dinheiro está na gaveta, debaixo das camisas. Tenho que chegue para o resto da vida. De manhã, tiro uma nota e vou trabalhar. À noite, ainda tenho a nota. Vou à mercearia e compro coisas para comer. Aos sábados, fico um pouco mais no café.
10
Deixei de fumar. Fechei as portadas da varanda e nunca mais as abri. É possível que o dinheiro aumente a existência e diminua a vida, como as estrelas do euromilhões. Não penso muito nisso. A gaveta das camisas é funda. O poço, também.
Caramulo, tarde de 13 de Novembro de 2006
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