22/12/2006

Canção de Coimbra - I

Assim como entre o frio e o corpo a roupa,
o tempo entre mente e mundo.
Assim, mais que seja, vai sendo – e é.
Vale tanto uma costureira quanto um leão.
5 Separa-os uma televisão; sábado à tarde,
ronrona o gato aos pés do fogo, um vento
interior mareja os cortinados, louças
e molduras resistem às gerações.
Cercas de ferro resguardam jardins lunares,
10 ao longo das áleas de tijolo. A viuvez
assoma de gaze às portas-janelas.
Na leitaria, mulheres vaquejam vocábulos,
as largas ancas estreitam esquadrias de estábulos.
A intenção persistente sob a medrosa palavra.
15 A pedagogia de cada doença: e a infantilização
da morte.
Algumas famílias catolicizam o ócio no parque.
Bétulas molham de sombra as tardes escuras.
Rapazes pincham borracha contra um muro.
20 Um homem feliz desce do eléctrico em
andamento – em andamento ambos.
Órfãos de cinquenta anos pedem moedas
no parque de estacionamento, rentes
à pomba que coxeia de ácido os pés
25 bambos.
Das cozinhas chega um cheiro a lápis,
dos sótãos uma sexualidade manual
de estudante pobre.
É sempre muito delicado o olhar volvido
30 às novas urbanizações, fornidas já
de contrafacções ciganas e hamburguerias.
Um homem escreve a giz de tabaco
uma elegia pulmonar, ao ar
livre – quem sou, ainda
35 ?
Sobe-se pelo lado do colégio das freiras,
pare-se em segredo uma ode prenhe
de licença, pus e lágrimas.
Tão pouca gente sempre, desde sempre.
40 No outro Verão, no cloro azul da
piscina municipal, éramos todos,
e todos éramos
tão pobres quase como hoje,
ainda não era este Verão rápido,
45 esta queijaria de derrotas e soluços.
No outro Inverno, o que não
sobrava em roupa não
sobrava em frio, nossos eram
o fogo e os pés do fogo,
50 dormiriam depois o gato (o leão) e
a costureira.
O tempo é gerúndio para os vivos
– os que recordam.
Arranjei sempre maneira: sou
55 uma oficina.
Quando o medrar dos ossos turvou
o coração, bosques abriram-se
de churrasqueiras batidas pelo fado
e pelos fadistas.
60 Espesso, como de gorja de porco, jorrou
o vinho, maila
sua orfandade material.
Alguma vez se começa a desbocar.
A reboque, a boca,
65 mais seus estragados dentes
de sorvedor de mulheres e açúcares.
Já então o frio, já então
o corpo.
Em outros lados, soube depois
70 das repetições – os homens iguais,
as viris mulheres, os toldos
frapejados pelo mesmo vento de
cortinados e sábados.
Ele descia a Alexandre Herculano,
75 descia das janelas o exercício de piano,
subia da gasolineira um éter árabe.
Ele descia a Alexandre Herculano
com largas árabes passadas musicais.
Do outro lado, sauna e ginástica
80 para bancários e professores.
Ele era tão jovem como a
vontade de fazer um filho a
uma mulher que soubesse subir,
como ele descia, a
85 Alexandre Herculano.
A viuvez assomava de gaze aos
consultórios-janelas.
Ele passou,
extinto gerúndio – participe-o, agora.
90 É o que faço.
Todos os ricos devem entretanto ter
morrido, posto que as vivendas
de carmim tez albergam hoje
repartições, serviços, vacinações.
95 Sobe-se da República à Cruz – e é
isto que se vê, devastada a
Sereia onde meios bifes e
alfarrábios fáceis (Conan Doyle,
Simenon, Agatha e Alberto Moravia).
100 Quando de vez se lhe estragou o
dente da frente, suportou o
insulto das gengivas com Camus.
Ensosso escadaril de pau levava
à broca – cuspa
105 se faz favor – para dentro.
Esmaeço e evanesço – ou
de e(r)va nasço.
Explode-me a boca, mas
é só uma pólvora-palavra
110 – tudo o que tenho.
Lá em cima, esperava-o a
mulher empregada.
Ele saltava do andamento,
eléctrico.
115 Tinham ambos uma carne formosa,
compacta de mental fiambre,
porcina, reprodutora.
Eu, não.
Eu estava só vivo.
120 Magritte e Hopper em posters nas montras.
Calhamaços de linguística francesa.
E uma atenção fosca ao rio,
a cuja tona boiavam laranjas e cadáveres
de galos.
125 Militares mordiam bifanas em vãos
de vielas.
Lado algum havia deuses,
Deus muito menos.
Como me foi possível nascer de manhã e
130 chegar tarde?
– Assim foi – vai sendo – e é.
Por dentro da cara, entre
a úvula e o dorso do dente,
a decisão da palavra.
135 Batiam, luscos, os fuscos prédios
seu entardecer de explicadores,
enfermeiras, ourives e
órfãos de cinquenta anos.
Noutra vida? Igual – como um homem.
140 E – como uma mulher – viril.
Descasco meses como a
laranjas.
Como daquela vez em que
pernoitei de vigília ao nascimento
145 de nova varã.
Passou-se a noite, passou-se a manhã.
Motas e artistas zamboavam
na urbanização nova, digerindo
gasóleos e hambúrgueres.
150 Passou-se tudo.
Depois (mas era Novembro, há
que desculpar), desci ao mofo
e à habilidade tússica dos
compatriotas.
155 Como de gorja de porco arrefecido,
vinagrava-se de pluviometria
a frase atlética, o
bolo de bacalhau e a
sandes de leitão
160 (às terças-feiras).
Teca, teca, teca, teca.
Sim, sempre, simpre e trempe:
o fogo, o gato.
Estas coisas não matam mas morrem.
165 Deram um ciclo de cinema italiano,
deram um ciclo de cinema alemão,
serviam pratos de massa arrefecida,
comburente era a gente com nossas
vis vilosidades intestinais.
170 Microtraumatismos da grossa delgada
memória.
Triparia.
E cultura.
Eu já não estava.
175 Nem ele.
Mais santos houvera, não
houvesse tanto pudor na
revelação
– isto
180 – ou uma coisa destas
– um poema.
A música roda em seus gonzos: e
não, não estou a gozar: pode ser
Kool & The Gang,
185 Pois não.
Vassouram a frio as churrasqueiras,
tremem os nitratos no azul-chile
do bairro operário.
Vocação.
190 Evocação.
Como não viver afogado, sendo
setenta por cento o corpo de água?
Toma nota.
Lá no fundo, está
195 a dignidade, mas
tu não lhe digas
nada.
Diz-lhe, tão-só, coisa
alguma.
200 Volta à cidade.
Era na Praça da Portagem:
pombos acidulavam o cagado
liberalismo de aluga-ingleses.
O rio – lá era.
205 Descia a santidade da Rainha,
maila da puta favorita de Dom
Pedro,
o Mal-Passado.
Operários tinham antes fervilhado
210 pelo que a hoje é a
Mendes dos Remédios,
caminho da Póvoa,
caminho da Mesura,
caminho de nada.
215 Que é como quem diz
– Vai pró mar!
Não vai
(antes fosse!).
Como é doce,
220 ter do osso do santo o sal
que mártir foi por Portugal!
Ou então:
“Sim, Carolina, ou i ou ai”…
Não.
225 Antes de outra maneira.
Antes o frio.
Ou, antes, o frio.
É diferente.
Outros custos:
230 um gerúndio custo.
A intenção persistente sob a merdosa palavra.
Não, não. Teca, teca.
Adelino Veiga, soldador
de guarda-chuvas,
235 associativoperário de
antes do João Brasileiro (foi Café da Alexandrina, depois Carocha),
à rasa de S. Bartolomeu,
vai lá tu que de lá venho eu,
mais os breves mortos
240 da instrução nocturna.
Por falar nisso.
Quando no corpo jovem
(um qualquer)
se cerrava o préstito de sangue,
245 o núncio coração
perorava correrias,
pinchavam rapazes borracha
contra um muro,
contra a vida toda
250 que depois, enfim.



Caramulo, tarde de 20 de Dezembro de 2006

5 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Feliz Natal <:)}

Manuel da Mata disse...

Grande pulmão, Daniel!
Gostava de um dia ler este poema com muito vagar e ter por perto um tal Cesário Verde.
Um abraço,
Manuel

Fanette disse...

250 é alta velocidade e com a polícia à procura de verba estás feito presa :). Desejo-te um's bom's dia-a-dia que esta coisa do natal "não se me encaixa". "Il est impossible d'effacer les taches de la conscience e nous devons nous accepter tels que nous sommes ou mourrir" Jean Anouilh. A vida é generosa. {}

José Antunes Ribeiro disse...

Caro Daniel,

Já tentei deixar um comentário, mas evaporou-se para outras paragens...sei lá!
Grande poema, grande poeta, volto a repetir uma emais quantas vezes forem precisas...
Muito Boas Festas, Bom 2007!

João C. Santos disse...

Olá boa noite.
Celebra-se a época do Natal, que como tudo será rica e festiva para uns e a outros nem por isso, é com esses que o nosso pensamento tem que estar é a esses que desejamos o melhor de tudo, numa altura em que a ausência nos fere e entristece como nunca.

Um Feliz Natal.

João C. Santos

Canzoada Assaltante