27/12/2006

Canção de Coimbra – III

A menina, varã, é uma
rosa de leite.
O mundo, como uma água
de jardim botânico, tremula
5 de frio lepidóptero.
A boca da menina esponja-se
ao caramelo da pré-palavra.
Seu sexo é um risquinho limpo:
uma navalhada benigna.
10 No bar, durante a espera, o televisor
rolava assassínios.
Um pires de orelha ensalsada,
uma cerveja alta, um café duplo,
um brandy clássico.
15 Eu tinha decidido agir.
Não mais meu era o pontão de pedra,
nem seus pescadores à linha.
Vascular, cerebral, o velho
transparente cedia à convocatória
20 final.
Seis meses a frio fogo,
os olhos no tecto,
como depois eu próprio,
por outra varã.
25 Passou-se a noite, passou-se a manhã.
Teca, teca, teca, teca.
A sinceridade pulsando na boca.
A marcha marcial dos comboios
civis. Água, pus, luz e anis.
30 A mente à própria contraluz
sua.
O conhecimento fetal.
O conhecimento fatal.
O teca-teca do comboio.
35 A afiação do lápis, mais
sua, ao contrário da vida,
ao contrário da morte,
diminuição.
Faz a mente a mesma,
40 que o lápis,
afiação: emagrece para
ficar.
Sobrevive do leite que
as rosas dão.
45 Não apenas, nunca apenas
a pena.
Florões ginecológicos ardiam
nas montras que o ar, vidrado de
calor, oferece ao púber’omem
50 – ao pobre homem.
Loreto, pedestre regressando,
cornetas e búzios, sininhos e campainhas,
um assobio para a menina,
o frio e a coragem,
55 Loreto, Fábrica da Cerveja,
Fiaco, Estaco, Lobito:
e a menina, ao cabo.
Na Fernão de Magalhães
(onde, dez anos depois, hei-de
60 situar a paragem de
Camilo Ardenas), os táxis e as
putas arrefeciam à nascente
lua dos noctívagos.
O homem da sapataria
65 (depois contava-me tudo)
fazia de taxista lunar
para aumento do salário.
Dizia-me esta puta e aquela
e aquela.
70 Eu recebia as notícias: livros breves,
coruscantes, recados da noite
– e de seus gelos com collants.
Estrelas enferrujavam no céu
inoxidável.
75 Pincéis abandonados
morriam a marta dos pêlos
outra vez.
Os santos – mais os houvera,
menos os ouviria quem
80 nos fazia.
Descendo, ainda.
Recta da Adémia, seus
ventos laterais,
suas ínsuas, canas, tangerinas.
85 A chaminé subindo no ar
como um míssil de pobres.
A ondulação salina de eucaliptos lavando
lavanda. E, enfim, Antuzede:
o padre italiano,
90 os comedores de ameixas verdes,
o prestígio do Avô,
a morte estabelecida
como um prestígio,
uma lotaria,
95 um caramulo antecipado.
Os meninos tuberculosos
davam vez às caixas brancas,
dlim-dlão, teca-teca.
Longe, até aqui.
100 O Bolão molhado de
laranjas e cadáveres de
galos.
Os meninos à varanda
perfumada de lenha.
105 Depois, tudo antes e tudo após.
O rapaz que casa com a órfã
ligeira e tetuda como uma cabra,
seus gémeos perfeitos, sua
mácula sexual.
110 Não, não – vive, deixa morrer.
Línguas-de-gato em chocolate de leite,
assuntada, flébil, fala do morto
porteiro.
O irmão (mais vivaz, mais salivoso)
115 enveredou pela carreira de
gentil-homem-de-armas – e
parasitou quanto pôde o
mau Estado e a boa Igreja.
Tem sido feliz, pagou-lhe
120 a vida em géneros.
Sai daí.
Na Estrada da Beira,
ao Alto de S. João:
a primeira videomáquina,
125 o último tuberculoso,
a anunciação da rapariga
que poemava como um lírio
exangue.
Fizeram obras, mais tarde,
130 mais tarde alguns vinte anos.
Hipermercaram, parquestacionaram
tudo, a zona toda.
À Portela, porém, se chega ainda,
pela linha flútil, flavíflua, à chilra
135 amarela água da
Praia dos Tesos.
Minha rapazice, aí.
Meu sport.
Meus dentes da frente,
140 ainda,
antes de Camus,
antes do ensosso esconso escadaril.
Fraga, frágua,
fragmento e água.
145 Acumulação de memórias,
de vários corpos em uma mesma
cabeça – esta.
Visão e revisão – e
cegueira, naturalmente.
150 Não é aqui que fico,
naturalmente.
Não é já o meu tempo.
Nunca foi o meu tempo.
Nunca será o meu tempo,
155 nem há-de ser:
excepto pelo lápis,
pela fornicação
e pela demasia de
laranjas
160 e, de galos, cadáveres
na cheia do Bolão.
Olha, deixa-me ouvir.
Olha, deixa-me dizer.
Isto está tudo certo,
165 correcto muitíssimo,
superlativa é a memória
do quase nada lembrado.
Isto e mais um fado.
Deriva, de novo:
170 à estiva dos lápis brancos,
os lápis-borracha que cegavam
o verdadeiro lápis – a mina
de carvões das coisas sofridas,
vistas, cheiradas ainda, digo:
175 – raparigas, bicicletas, hortas,
urtigas, infectas mortas,
palavras, teca, palavras teca-
-teca.
Na Colecção Fruto Real:
180A Cabana do Pai Tomás,
Coração,
A Ilha do Tesouro,
Robinson Crusoe e
Tom Sawyer.
185 O bolor nesses livros.
Depois de progerar, o
que descia a Alexandre Herculano
guardou uma bota da filha,
como um dedo-múmia,
190 como um pergaminho de talco,
como uma extensão cristalizada em couro do orgasmo,
como um retrato dela,
varã dele.
Rever o nunca visto.
195 Recriar o não-nado, mas não
nada.
Nunca, apenas, a pena.
À frente, retemperarei decerto
o velho amor à palavra-falésia,
200 à pólvora-palavra:
decerto ou talvez.
Há sempre um rumor de rosas.
Bétulas e tosses de gasóleo.
Cabrito assado com grelos,
205 jorrava da gorja do porco
o vinho espesso.
A gente crescia e não aumentava,
senhores
Damião, Fernando, Pedro, Luís.
210 Posso ficar a dever?
“O dever acima de tudo”,
como em Mafra.
Isso foi na orla do sangue,
do rápido corpo
215 (9,6 segundos aos 80 metros).
Passa tudo,
passa quase tudo
– muitos (dos) anos passam:
e, olha-me agora, estou
220 numa pastelaria cuja TV
passa wrestling,
senhores adiposos mimam
o pontapé-na-testa, a barriga-aríete,
a unha-pistola, a chuva-de-sangue.
225 Sim, calma – voltarás.
Voltarão.
Voltareis.
Há mais lápis, aqui.
Pouco, mas.
230 Entro (faz de conta) de novo
para a orelha clássica, o brandy
alto, a espera da
varã primeira.
Está frio, sim, mas há conversas.
235 O néon bate, grená, nos
presuntos enforcados.
Sou amavelmente recebido.
Estão habituados a clientes
de maternidade,
240 seus juros de mora,
sua taxa vitalícia,
sua repetição de gerações.
Tenho um fato decente,
uma frase amável,
245 sou tão jovem
como um pai distraído.
Espera, agora.
Vou falar-te de Coimbra.
Penso não ter dito ainda,
250 sobre o assunto, quanto baste.



Caramulo, noite de 22 de Dezembro de 2006

2 comentários:

Manuel da Mata disse...

Estou convencido de que a sinfonia tem quatro andamentos.
Se eu residisse no Caramulo, provavelmente, também teria pulmão possante.
Aqui no meu posto, leio e aguardo o último andamento.
Um abraço, amigo!
Manuel

Daniel Abrunheiro disse...

Era para ter quatro, precisamente. Hoje, porém, Manel, fiz o 5º (e último, prometo).

Canzoada Assaltante