20/04/2018

TAMBÉM SOU CAPAZ DE AMAR UM GAJO - Rosário Breve n.º 551 in O RIBATEJO de 19 de Abril de 2018 - www.oribatejo.pt






Também sou capaz de amar um gajo



É sem minimamente mentir que posso dizer que o conheço de toda a (minha) vida. Sei muito dele. O que não sei, tento angariá-lo mercê de honesto estudo & de inquebrantável observação – e quando estes dois instrumentos resultam lacunares, supro o improvável pela imaginação, essa memória criativa que o porvir nos concede para que algo passado nos seja presente.
Do seu nascimento até hoje (e não escrevo até à sua morte porque, mui felizmente, ainda se não deu ao pecado imperdoável de morrer), todo o tempo dele me interessa. Mais isto: nunca fui isento a seu respeito – tanto no que concerne às suas admiráveis virtudes, como no que respeita aos seus obstinados defeitos.
Os meus Pais conheceram-no antes de mim. Naturalmente assim foi. Passaram-mo por uma espécie de herança transmigratória, ou consuetudinária, ou por usucapião, que nunca enjeitei. Conto dá-lo à atenção crítica de minhas ambas Filhas, dádiva que a minha mão direita pode & deve partilhar com a gémea esquerda sua.
Por que claro mistério me interessa ele tanto? Por mistério algum. Fala uma Língua maravilhosa, para começar. Come bem, bebe muito (de mais até) – imito dele a segunda coisa, não a primeira. Lê todavia pouquíssimo. É sentimentalão no que escreve. Tão depressa se diz “religioso” quão “não-praticante” & “laico nas horas vagas” – paradoxo que sempre me soube a tremoços sem cerveja.
Fisicamente, é alto & magro, de costas admiráveis. Mais: do semblante dele, alguém afortunadamente disse ser o modelo europeu de rosto por excelência – se não por definição.
Mentalmente, é uma criança atrapalhada por lapsos de senilidade.
Comportamentalmente, é doméstico & arruaceiro; lhano & manhoso; hoje acha & entrega à polícia uma carteira recheada de documentos e muito dinheiro; ontem andou à porrada com um cego pela caixa-de-esmolas; amanhã é capaz de dormir com um homem que lhe ronda a mulher. Já, com estes meus olhos que a terra há-de enxugar, vi marejarem-se-lhe de lágrimas os dele à imediata audição de Carlos Paredes – assim como o sei também muito useiro & vèzeiro dessas festarolas contaminadas de desquitadas estarolas que desfalecem baba & ranho ante o Tony Carreira. Já o vi, materno & ortopedista, reparar a patita quebrada de um pardal – assim como o soube escarlatemente exultando no redondel em tarde de barbárie tauromáquica.
Sim, gosto muito dele. Gosto irreparavelmente dele. Não o adoro, atenção! Adorar implica genuflexão – posição equívoca que poderia tornar-me mal-visto aos olhos das pessoas decentes. Chicoteio-o verbalmente pelos defeitos tantas vezes evitáveis de que é, aliás, exímio & contumaz amante & praticante. Admoesto-o (sem resultado prático positivo jamais, valha a verdade) quando ele é insensato, quando ele é maria-vai-com-as-outras, quando ele vota mal e se gaba disso, quando ele – na sua Língua maravilhosa – fala sempre antes do que jamais pensa depois, quando ele se arrola às procissões de santos depois de ter feito em casa um escarcéu dos demónios a mulher & filhos.
Mas também o louvo, louvo-o total & incondicionalmente: quando ele pinta uma casa de luz como em nenhum outro lado pode transparecer assim; quando ele amanha a horta com preciosas perícias de renda-de-bilros; quando ele me recebe com o pão mais fresco, o queijo mais puro, o peixe mais vivo & o vinho mais capitoso no seu pátio refrescado pela latada de cachos gordos como pérolas adiposas sob que cão & gato dormem em consolada & perfeita harmonia vigiados pelo canário & pela sogra velhíssima mas imortal.
Louvo-o, sim – e arremessemos sem medo o outro verbo: e amo-o. Amo-o de olhos abertos até nas mais fechadas noites. Amo-o sobretudo por ele ser quem é. Amo-o sobretudo por certo dia ter feito o que fez. Quem é ele? É Portugal. E o certo dia é Vinte-Cinco-de-Abril-de-Mil-Novecentos-e-Setenta-e-Quatro.  





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Canzoada Assaltante