Também sou capaz de
amar um gajo
É
sem minimamente mentir que posso dizer que o conheço de toda a (minha) vida.
Sei muito dele. O que não sei, tento angariá-lo mercê de honesto estudo &
de inquebrantável observação – e quando estes dois instrumentos resultam
lacunares, supro o improvável pela imaginação, essa memória criativa que o
porvir nos concede para que algo passado nos seja presente.
Do
seu nascimento até hoje (e não escrevo até
à sua morte porque, mui felizmente, ainda se não deu ao pecado imperdoável
de morrer), todo o tempo dele me interessa. Mais isto: nunca fui isento a seu
respeito – tanto no que concerne às suas admiráveis virtudes, como no que
respeita aos seus obstinados defeitos.
Os
meus Pais conheceram-no antes de mim. Naturalmente assim foi. Passaram-mo por
uma espécie de herança transmigratória, ou consuetudinária, ou por usucapião,
que nunca enjeitei. Conto dá-lo à atenção crítica de minhas ambas Filhas,
dádiva que a minha mão direita pode & deve partilhar com a gémea esquerda
sua.
Por
que claro mistério me interessa ele tanto? Por mistério algum. Fala uma Língua
maravilhosa, para começar. Come bem, bebe muito (de mais até) – imito dele a
segunda coisa, não a primeira. Lê todavia pouquíssimo. É sentimentalão no que
escreve. Tão depressa se diz “religioso” quão
“não-praticante” & “laico nas horas vagas” – paradoxo que
sempre me soube a tremoços sem cerveja.
Fisicamente,
é alto & magro, de costas admiráveis. Mais: do semblante dele, alguém
afortunadamente disse ser o modelo europeu de rosto por excelência – se não por
definição.
Mentalmente,
é uma criança atrapalhada por lapsos de senilidade.
Comportamentalmente,
é doméstico & arruaceiro; lhano & manhoso; hoje acha & entrega à
polícia uma carteira recheada de documentos e muito dinheiro; ontem andou à
porrada com um cego pela caixa-de-esmolas; amanhã é capaz de dormir com um
homem que lhe ronda a mulher. Já, com estes meus olhos que a terra há-de
enxugar, vi marejarem-se-lhe de lágrimas os dele à imediata audição de Carlos
Paredes – assim como o sei também muito useiro & vèzeiro dessas festarolas
contaminadas de desquitadas estarolas que desfalecem baba & ranho ante o
Tony Carreira. Já o vi, materno & ortopedista, reparar a patita quebrada de
um pardal – assim como o soube escarlatemente exultando no redondel em tarde de
barbárie tauromáquica.
Sim,
gosto muito dele. Gosto irreparavelmente dele. Não o adoro, atenção! Adorar
implica genuflexão – posição equívoca que poderia tornar-me mal-visto aos olhos
das pessoas decentes. Chicoteio-o verbalmente pelos defeitos tantas vezes
evitáveis de que é, aliás, exímio & contumaz amante & praticante. Admoesto-o
(sem resultado prático positivo jamais, valha a verdade) quando ele é
insensato, quando ele é maria-vai-com-as-outras, quando ele vota mal e se gaba disso,
quando ele – na sua Língua maravilhosa – fala sempre antes do que jamais pensa
depois, quando ele se arrola às procissões de santos depois de ter feito em
casa um escarcéu dos demónios a mulher & filhos.
Mas
também o louvo, louvo-o total & incondicionalmente: quando ele pinta uma
casa de luz como em nenhum outro lado pode transparecer assim; quando ele
amanha a horta com preciosas perícias de renda-de-bilros; quando ele me recebe
com o pão mais fresco, o queijo mais puro, o peixe mais vivo & o vinho mais
capitoso no seu pátio refrescado pela latada de cachos gordos como pérolas
adiposas sob que cão & gato dormem em consolada & perfeita harmonia
vigiados pelo canário & pela sogra velhíssima mas imortal.
Louvo-o,
sim – e arremessemos sem medo o outro verbo: e amo-o. Amo-o de olhos abertos
até nas mais fechadas noites. Amo-o sobretudo por ele ser quem é. Amo-o
sobretudo por certo dia ter feito o que fez. Quem é ele? É Portugal. E o certo
dia é Vinte-Cinco-de-Abril-de-Mil-Novecentos-e-Setenta-e-Quatro.
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