Fauna
Dois
antigos na paragem do autocarro comentam a abertura da época da caça: IRS, IMI,
recapitalização da banca privada à custa do contribuinte público. Envergam
ambos roupa bem lavada, calçam com distinção. Um é de face rubicunda, que trai
dele a vocação de merendas bem avinhadas. O outro é mais enxuto de carnes,
perfil mais inteiriço, deve ter sido tropa de carreira.
A
luz apaga-se, reacendendo-se instantes depois. No lugar dos dois maduros, duas
idosas agora em cena. Uma, de saco com gerânios plásticos de campa fúnebre,
quatro velas em bases roxas com furinhos crucifixos: ar de santa-viúva,
lavadora extremosa do mármore de seu falecido, resignada adoradora de cinzas. A
outra, de pernas arqueadas que a fazem gingar como barca ancorada em joanetes.
Falam sem se ouvir uma à outra – de doenças, consultas, operações & demais
deliciosas aflições.
Uma
nuvem mais densa obscurece-as, dissolve-as, dissipa-as, rouba-no-las. Em lugar
delas – e para nosso mor benefício -, uma moça se incorpora. Maravilhosa
incorporação. Bonita de mais para ser alvo de cobiça sexual. “Ideal para namorar aos domingos”, como
dizia um conhecido meu. Deveria ser emoldurada – mas só para exibir em sonhos.
O senão desta bela é um defeito
horrível no dedo: anel-de-noivado.
O
projector estremece, esmaece, entenebrece: já na vez da formosa se insurge um
arrumador de estacionamento. Avelhentado de muito pacote de vinho-de-cozinha
& de muita sandes de pão-com-pão. Amarelidão de outono hipodérmico com
garrote – mas rijo qual erva-daninha em interstício de calçada. Orgulhoso, é
sem agradecer que me aceita o cigarro. Águia apeada que o vento não leva.
Mas
que novo apagão de cena leva, sim. Quatro adolescentes, agora. Macambúzios. Autistas
de smartphone, que matraquilham
velocissimamente. Nenhum conversa com ninguém. Calças rotas de propósito,
dentes agrafados por cremalheiras ortodônticas: arrumadores do futuro.
Um
cavalheiro de lábio-leporino fende o ar da fala como a serpente assobia.
Escuta-o mui solicitamente um que é solicitador, tirou o curso depois de
reformado da Marinha Mercante, tem valor, aprender
até morrer.
Dois
bêbedos maravilhosos ziguezagueiam da esquerda-alta à direita-baixa da cena
tablada. Um assegura Deus, o outro bebeu como o Diabo. Pertencem ambos a essa
feliz eternidade d’inda-não-ser-amanhã. Um traz chapéu na cabeça mas é do amigo
a cabeça, que aliás nem chapéu usa. O pior-da-vida é a gasosa no vinho e que as
nossas mulheres fiquem viúvas. E que as nossas mulheres, ficando viúvas, nos
lavem o mármore com água. E se auto-santifiquem e nos plastifiquem de gerânios.
Nisto,
ressuscita em palco o arrumador-de-carros. Traz uma orelha murcha & uma
narina esgalhada: algum tóxic’olega lhe bateu por vinte cêntimos que estavam no
chão como Portugal também esteve entre 1926 e 1974. Não se queixa. Traz moedas q.b. para uma sandes de iscas & um martelo de branco. Quase exulta. Águia
devoradora de vísceras.
E
ainda: quatro vezes magra como quatro canas, uma senhora leva dois dedos à
gaiola do peito, inquieta pelas intermitências arrítmicas do coração. A dois
metros dela, sozinho no mundo como a Lua, um chulo de viela mijona escarra um
esparadrapo amarelo da textura, da consistência & do volume de um
ovo-estrelado.
Um
casal de cegos (não-esmoleres) tirita o morse
do chão com bengalas de alumínio extensível.
Uma
mãe de gémeos em carrinho-duplo anuncia ao mundo a duplicação do mundo.
Foi
produtiva, a manhã. Para que a solidão do espectador não seja tão vincada, água
& sabão nas lentes oftálmicas: é tudo quanto o teatro do quotidiano requer.
A fauna humana é inesgotável, haja lápis que a circo-inscreva. A grande
maravilha não é o que as pessoas dizem – é o que pensam calar. Não é o que
mostram – é o que julgam esconder. Qualquer lápis decente sabe isso.
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