Santa Engrácia,
vera padroeira de Santarém
1 Findava-se a manhã quando, dirigindo-me eu da marquise
à cozinha no intuito de apurar do apuro da enxúndia galinácea que há duas horas
borbotava ao lume brando, me ocorreu, em uma espécie de estremeção messiânico,
o que acima botei por título. Senti logo que a frecha da verdade me varara o
peito. Se a epifania pecava, era por genuína que pecava. Dúvida nenhuma,
senhorinhos leitorões meus, pois que:
Obras da EN 114? – Santa
Engrácia.
Loja do Cidadão? –
Santa Engrácia.
Recolha &
tratamento capazes, eficazes, a tempo-e-horas e limpinhos do lixo? – Santa
Engrácia.
[E
a este pouco santo descaminho parece ir deitando pernada a prometida (para este
mesmo Setembro) intervenção consolidadora das Barreiras.]
Não sei bem a que
propósito, ocorreu-me o malogro das cabaças na Torre a que elas cabaças deram
nome, essas sonoras e repercucientes cabaças ocas que cabeças idem esvaziaram
mais ’inda. O altaneiro e cabaceiro relógio torrejão não despede já chamada
laboral de pega & despega aos trabalhadores que já não há por essas
lezírias que a haver continuam. Mas adiante, que a cabaça é outra.
2 Recolhendo da cozinha ao chuveiro, fui esfregu’ensaboando-me
as misérias dérmicas, envolto eu mais de vapor que de nevoeiro o pobre menino
D. Sebastião. A acima relatada revelação untara-me de um vago misticismo pagão.
Embrulhado no toalhão de felpuda crina que nos ofereceu uma senhora muito
boazinha da Obra do Padre Américo que não perde um pobre, passarinhei descalço
& pingão até à estante onde nos existe & nos assiste outra santidade,
doméstica e máscula esta: São João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett.
Sentindo-me o refulgente círio do olhar, logo esse meu adorado Cânone assim
para mim:
“Era uma ideia vaga, mais desejo que tenção, que eu
tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu
alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas.”
Santarém, queria
ele dizer – e disse – logo no capítulo primo das justamente célebres Viagens suas por arredores nossos. Num
arroubo profano, fui de responder-lhe que:
“Meu senhor Clássico, meu apogeu Romântico, meu
Primeiro Moderno: pois olha que Santarém continua tudo que dela disseste – Histórica de mais um século e mais seis décadas e
mais dois anos desde que te finaste; Monumental de ferrolhos caretas e de cerradas tranquetas; e Vila – pois que de citadino pendão tem tão-só o
vício administrativo e a canga fiscal, que, de resto, é mais brejo matoso de
esguedelhada erva daninha sem corte por quanto é sítio público: assim
conseguintemente, Santarém, de cidade, só a tarjeta autárquica e a clientela
viciosa e a indecorosa camarilha de lusitanóide costume. Capital do Ribatejo,
então, muito mais cada vez menos. Fica ciente. E o Vale da tua Joaninha cheira
a voadoras fossas ubíquas e a frades mal lavados. Ciente ficas, meu bom Joaninheiro.”
3 Enxuto finalmente, ornei-me de não possidónias
roupagens puídas mas limpinhas. (Ou limpinhas mas puídas – é conforme me dá na
resignação ou no desassombro.)
Deu-se-me então o
1.º Desastre. Ao vergar a mola mole do espinhaço para efeito de encruzilhação
dos atacadores sapatais, fendeu-se-me em irreversível rasgão a costura que vai
do cós posterior à base da braguilha. Senti logo a friúra da aragem nas
pudendas reentrâncias. Como só tenho aquele par de calças (descontando o de
casamento, que há trinta anos me não sobe o joelho, quanto menos içar posso à
ilharga), foi de calções de caqui cigano que saí à rua.
Deu-se-me então o
2.º Desastre. Ao lustral sol da praça já, lembrei-me do caldo ao lume. Aflição imediatamente
vascular-cerebral! Apocalíptica bofetada de arrelia! E exsudorífera agonia
fria. Deslarguei-me a correr de calções como se por milagre houvesse voltado a
menino. Não esperei pelo elevador. Galguei mas foi degraus & patins – não
aos saltinhos científicos à Nelson Évora, não, mas sim à marido de bombeira na
antemão de caçado em flagrante por fogo-posto ao próprio casebre. Na esfalfad’arfante
atrapalhação, deixei cair as chaves para aí umas setenta-e-catorze vezes.
Adentro já, a esconsa cozinha volvera-se numa ominosa espécie de sauna
crematória. Desfolhei do fogão a obstinada rosa do gás, deitei ao diabo o testo
da panela sem tempo para urrar o calão das queimaduras, espreitei o mais
actor-trágico possível: galináceo cremado, caldo evaporado e o fundo todo
esturricado. Moral da história já a seguir no ponto 4 e último:
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