Encontros de Bolso
Junta-se
um sem-fim de coisas nos bolsos. Cada um (não) sabe das suas. É preciso
despejar os bolsos de vez em quando. Caso contrário, o acumulado toma-nos conta
da vida.
Ia
eu no comboio descendente. Meti a mão ao bolso à cata de uma afiadeira.
Encontrei um lenço agora enxuto, resto mortal de um amor que deixou de valer a
pena molhar. Encontrei a chave de um carro que não tenho há muitos anos por me
ter esquecido de onde o estacionei. Encontrei uma unha que roí numa
quinta-feira do ano passado. Encontrei o calor da minha mão. Encontrei um peixe
que se tinha abrigado de não estar a chover. Encontrei um bilhete manuscrito
com a voz do meu Pai a dizer “há arroz de
frango está no fogão”. Encontrei o arroz, mas não o meu Pai. Encontrei uma
maneira diferente de escutar as árvores. Encontrei um pássaro desenhado a
feltro azul por uma estrela de cinco pontas. Encontrei uma estrela de cinco pontas
que era, a feltro encarnado, uma mão de menina. Encontrei uma carta
impreterível do banco. Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro.
Encontrei uma ponta de cigarro fumado por outra boca. Encontrei um jornal publicado
antes de tu teres nascido. Encontrei duas folhas de árvore: a nervura de uma
indicava a certeza da morte, a transparência da outra demonstrava a necessidade
de nascermos. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz da minha Mãe a dizer “se não quiseres o arroz estrela ovos não
sujes o fogão todo”. Encontrei a tatuagem do marinheiro que todos
deveríamos ter sido. Encontrei um brilhozinho nos olhos sem olhos. Encontrei o
mapa dos rios do sangue. Encontrei a visão aérea da solidão. Encontrei uma
pulga que fazia poupanças há quinze anos para comprar um cão maior. Encontrei a
fotografia que vê a minha irmã vestida de verde a olhar pela janela uma manhã
sem remédio.
Só
não encontrei a afiadeira com que costumo aguçar o lápis que escreve estas
histórias.
Sem comentários:
Enviar um comentário