19/07/2014

Rosário Breve n.º 367 - in O RIBATEJO de 17 de Julho de 2014 - www.oribatejo.pt

Menos um morto ali para a mesa do Moita

Não é só o professor Marcelo que faz homilias dominicais. Moita Flores também as faz. É na página 2 do Correio da Manhã. Não há véspera de segunda-feira que lhe escape. Na mais recente, perorando um chorrilho de banalidades vácuas sobre os incêndios que cada Verão nos causticam a Pátria, sai-se ele com esta assim: “Oxalá morram menos pessoas, mas que ninguém duvide que o fogo nos vai abrasar outra vez.”
Pode ser que eu seja picuinhas. Pode, até, que eu solenemente me dê ao desperdício de embirrar com o homem. Pode. Mas, a esta, não lha deixo passar em claro, que nem na lerpa sou de ir ao escuro. Basta olhar para a (des)conta-corrente da Câmara de Santarém para ver sem precisão de óculos e/ou de binóculos que este senhor Moita é de más contas. De modo que o interpelo aqui assim: Menos pessoas mortas? Quantas menos? Um bombeiro? Dois? Três civis? Meia dúzia? Frase infeliz, irreflectida, vã, de copy-paste moralóide: “Oxalá morram menos pessoas (…)” A frase correcta, até humanamente, até curialmente, até como toda a gente, teria (e tem) de ser: “Oxalá ninguém morra.”
Ao contrário do senhor Flores, a minha mulher é pertinente. Para além do ofício de ganha-pão, é bombeira voluntária há uma carrada de anos. Terei eu de pedir ao senhor Flores que a integre na sua oração-de-oxalá? Que seja ela, este Verão, uma das “menos” que não ardam? Uma das que, sacrificando-se na ara e em aura de solidariedade social-colectiva, não deixem de si apenas cinzas, pó que somos todos?
Atenção, por favor: nada me move contra o ex-edil de Santarém, esse fugitivo do e ao escrutínio público. Também nada dele me comove. É criatura bidimensional apenas. É apenas outro professor Marcelo. É apenas outro Seara. Outro Sousa Tavares filho apenas. E outro Romeiro do Frei Luís de Sousa: “Ninguém!”.
Mas, figura pública que tanto e tão incansavelmente se autopublica e que tanto e tão incansavelmente se autopromove, tem responsabilidades. A citação motriz desta crónica sobrepassa o banal. É lixo à nascença. É uma treta até crápula. É uma coiseca vadia. Alguém ainda me há-de explicar como é que o (esse sim, grande) Luís Filipe Costa se deu ao luxo triste e ao desperdício de co-assinar com ele aquela frívola coisa dos “Polícias” para essa ampla manjedoura de inúteis e de cravas chamada RTP. Ou como é que há editora que de Moita carrascamente publique os dramalhões pseudo-históricos relativos ao elenco episódico da nossa vil capoeira pátria: das Ferreirinhas aos Ballet-Rose, dos Alves-dos-Reis a toda a trapalhada com a própria mulher em protagonista do telelixo do marido.
Digo eu e tenho razão: uma pessoa séria não deseja, nem muito menos escreve, menos morte. Deseja nenhuma. Escreve nenhuma. Num desastre de avião, uma pessoa decente não diz que “ainda bem que só morreram 273, sempre se safou a hospedeira”. Um escriba a sério nunca rosna que “no próximo bombardeamento de Gaza, oxalá que os israelitas matem menos quatro crianças”.
Há coisa de duas décadas, Gilles Lipovetsky escreveu uma obra chamada “A Era do Vazio”. É a nossa. É a porra da síndrome do balão: muita cor por fora mas só ar quente por dentro. Hélio de ninguém. Nada-resto-zero.
Já quanto à dívida da Câmara de Santarém, oxalá que este ano seja de menos milhões. Um milhão por cada morto a menos na fogueira do senhor Moita, a quem só não mando ir pôr-se num porco por não saber, eu, se ele domina a arte do contorcionismo. 

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Canzoada Assaltante