13/07/2014

Mais quatro entradas do caderno 31 da série Leite dos Santos - Leiria, tarde de domingo, 13 de Julho de 2014


36

A senhora Gioconda nos olhos nos olha
– e sorri de nós, não a nós.
Sorrirá da pobreza de cada um,
de cada um da escassez a que assiste.

Figura de colo manso, de suave tintura as mãos,
é senhora para isso, disso e de/para muito mais.
Habituámo-nos todos à sua voraz ubiquidade,
estatisticamente símil à do Cristo e à do Che.

Nimbada de ordinário mistério,
parece sacerdotisa de penhoristas,
pois que para sempre de prego pendurada,
a pobre.

Ninguém a requer em casamento,
ninguém aparece que um vermute lhe pague
em algum aprazível balcão do entardenoitecer.
Onanismos, não merece. Erecções, muito menos.

Pode que por ser tão Mona.

37

O corpo sente-se branco na luz completa.
Estas árvores, porém – que sentirão?
À luz toda, subindo água, cada delas, aberta,
abre-se em altura por & à condição.

Panos limpos domesticam a cozinha
que em manhã livre ela lavou.
A sala cheira a qualquer coisa azevinha
que, avezinha, ela (po)voou.

Eu vim à rua. Em casa, ela, de si descuidosa,
cuida das plantas, que dela são prolongamento.
Nunca se queixa, nem se lhe escuta lamento

do que-foi-que-não-foi. Habilidosa,
bricàbraca coisas, abre, fecha, veda, estanca.
Nisto, dá-lhe a luz: ei-la, tão branca.

38

Que espécie de pureza em leite poderia eu
não prometer-te em vida por mais um dia?
Ouvi falar crianças, foi num outro Inverno. Sucedeu
que aquilo me deu, não sei, uma ’spécie d’alegria.

Em torno de nenhum centro me fiz periferia.
Ah sim, tenho habitado abrigos só mentais.
Contas bem feitas, usei já não sei quantos portugais.
Deles, nenhum a algum outro preferiria.

É mesmo assim como te digo, podes crer.
Vou usando com proveito a ciência da não-espera.
Telefonam-me muito, mas é p’ra me dizer

que este & aquele Amigo não chegam à Primavera.
Porra, chiça, merda, catano!
Já (des)contei cinco, só este ano.

39

Com deliciosa, insuportável quase, lentidão
a do segundo-andar acende dela o cigarro.
De vez em quando pela rua passa um carro
e mais nada se passa, há felizmente quietação.

A mulher disse-me que trouxesse versos & algum pão.
Esqueci-me em casa do isqueiro, peço fósforos à Sónia,
robusta empregada, que seria amazona se fosse da Amazónia.
A luz azula a esplanada. É pouca a frequentação.

No bornal, trago o Ángel Crespo & o Antoine de Saint-Exupéry.
Já me icei duas vezes daqui: uma p’ra fósforos, outra p’ra chichi.
Vai bonita a tarde: luz & brisa são dupla consolação.

Bocejo o meu bocadito, apesar dos três cafés que bebi.
Se calhar fecho ora o caderno, vale pouco o qu’escrevi.
Valha, enfim, o que valer   desde que me não esqueça o pão.

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Canzoada Assaltante