36
A senhora
Gioconda nos olhos nos olha
– e sorri
de nós, não a nós.
Sorrirá da
pobreza de cada um,
de cada um
da escassez a que assiste.
Figura de
colo manso, de suave tintura as mãos,
é senhora
para isso, disso e de/para muito mais.
Habituámo-nos
todos à sua voraz ubiquidade,
estatisticamente
símil à do Cristo e à do Che.
Nimbada de
ordinário mistério,
parece
sacerdotisa de penhoristas,
pois que
para sempre de prego pendurada,
a pobre.
Ninguém a
requer em casamento,
ninguém
aparece que um vermute lhe pague
em algum
aprazível balcão do entardenoitecer.
Onanismos,
não merece. Erecções, muito menos.
Pode que
por ser tão Mona.
37
O corpo
sente-se branco na luz completa.
Estas
árvores, porém – que sentirão?
À luz toda,
subindo água, cada delas, aberta,
abre-se em
altura por & à condição.
Panos
limpos domesticam a cozinha
que em
manhã livre ela lavou.
A sala
cheira a qualquer coisa azevinha
que,
avezinha, ela (po)voou.
Eu vim à
rua. Em casa, ela, de si descuidosa,
cuida das
plantas, que dela são prolongamento.
Nunca se
queixa, nem se lhe escuta lamento
do
que-foi-que-não-foi. Habilidosa,
bricàbraca
coisas, abre, fecha, veda, estanca.
Nisto,
dá-lhe a luz: ei-la, tão branca.
38
Que espécie
de pureza em leite poderia eu
não
prometer-te em vida por mais um dia?
Ouvi falar
crianças, foi num outro Inverno. Sucedeu
que aquilo
me deu, não sei, uma ’spécie d’alegria.
Em torno de
nenhum centro me fiz periferia.
Ah sim,
tenho habitado abrigos só mentais.
Contas bem
feitas, usei já não sei quantos portugais.
Deles,
nenhum a algum outro preferiria.
É mesmo
assim como te digo, podes crer.
Vou usando
com proveito a ciência da não-espera.
Telefonam-me
muito, mas é p’ra me dizer
que este
& aquele Amigo não chegam à Primavera.
Porra,
chiça, merda, catano!
Já
(des)contei cinco, só este ano.
39
Com
deliciosa, insuportável quase, lentidão
a do
segundo-andar acende dela o cigarro.
De vez em
quando pela rua passa um carro
e mais nada
se passa, há felizmente quietação.
A mulher
disse-me que trouxesse versos & algum pão.
Esqueci-me
em casa do isqueiro, peço fósforos à Sónia,
robusta
empregada, que seria amazona se fosse da Amazónia.
A luz azula
a esplanada. É pouca a frequentação.
No bornal,
trago o Ángel Crespo & o Antoine de Saint-Exupéry.
Já me icei duas vezes daqui: uma p’ra fósforos, outra p’ra chichi.
Vai bonita
a tarde: luz & brisa são dupla consolação.
Bocejo o
meu bocadito, apesar dos três cafés que bebi.
Se calhar
fecho ora o caderno, vale pouco o qu’escrevi.
Valha, enfim, o que valer – desde que me não esqueça o pão.
Valha, enfim, o que valer – desde que me não esqueça o pão.
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