10/07/2014

Rosário Breve n.º 366 - in O RIBATEJO de 10 de Julho de 2014 - www.oribatejo.pt



Zeferino Crusoe

Chamo-me Zeferino, tenho 47 anos e ganho a vida a fazer carocas, ou pelo menos antigamente ganhava, sempre tive um bocadito de jeito mais ou menos pa’ quase tudo na construção e na agricultura, o problema é que agora tou preso vai já para uns meses largos, mas atenção, preso sem ser na prisão, nunca cometi crime algum senão ser pobre, digo preso porque é como tou, eu conto.
Acontece que aqui há uns tempos me chamaram se eu queria vir ajudar a arrancar equipamentos e coisas assim aqui ao Café Central e eu disse que sim, três euros à hora hoje em dia não são pa’ desprezar, quanto mais aqui há meses que era quando o euro ainda valia, sei lá, tipo uns setenta paus dos antigos quando é pa’ receber e quatrocentos e tal dele quando toca a pagar, mas adiante, apresentei-me e fiz tudo o que ma mandaram, arranquei tudo o que ma mandaram arrancar, arcas frigoríficas, vitrinas dos bolos, máquina do café, os seis baixos-relevos do senhor Maximiliano acho que Alves, era isso, Alves, por acaso até muito bonitos, tive pena, claro, mas três euros são três aéreos e é vê-los àvoar, como eu dizia portanto arrancar arranquei, só que no fim, quando era p’arreceber, quem arrancou foi quem aqui me chamou, o pior inda nem foi isso, o pior foi que por causa da marosca me trancaram aqui dentro e por isso é que eu disse que tava preso e tou e é aqui no Café Central.
Tou aqui há tanto tempo que nem sei s’inda é o senhor Noras q’amanda cá na parvónia ou sindé aquele da televisão que diz mal do que se dizia que queria o lugar dele, se não é devia ser, dizem que ele é que não quis qu’isto fechasse, qu’era uma pena, talvez por causa dos coisos maximilianos, isso não sei nem sou chamado a saber, o que eu sei é arrancar, construir também sei se for preciso, mas pa’ isso chamam cada vez menos ou nada.
Ó princípio inda julguei que fosse descuido sem maldade, mas não era, sacanitas dum raio viesse qu’os partisse, dos primeiros quinze dias nem me posso queixar, havia uma data de latas de atum e coca-colas daquelas de litrimeio, um português safa-se sempre mesmo que seja sozinho, é como, com licença da palavra, o mijar, se mija um português mijam logo dois ou três, ao menos no mijar sempre somos unidos, isso ninguém nos tira, inda havia luz também e como descobri a televisão antiga mesmo a pretibranco sempre fui vendo o Goucha e a Maya de manhã e o Jorge Gabriel de manhã à noite, nem sei como é que ele aguenta tanto sem ir a casa, quer dizer, agora sei, que também já não vou à minha Póvoa da Isenta desde antes do Natal, às tantas a minha mulher ainda desconfia que eu fui ali ao Retiro da Francesinha e prontos, e eu nada disso, que sempre lhe fui sério, excepto daquela vez quando foi pela largada dos toiros em Almeirim mas isso nem conta se vocês não lhe contarem.
Mas agora cortaram a água e tou que nem posso, ainda experimentei mijar menos de cada vez para ver se mapareciam os tais dois ou três e viste-zios.
Modos que era para pedir ao senhor Noras ou ao coiso depois dele que até fez mesmo aqui a festa de candidato antes de sir embora quase logo a seguir, agora já malembro, se podia mandar abrir isto mais uma vez, que eu juro que desta vez é de borla, té digo mais, que desta vez sou eu que pago a reabertura, só tem é de me dar tempo para juntar os três euros.

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Canzoada Assaltante