Zeferino
Crusoe
Chamo-me Zeferino, tenho 47 anos e ganho a
vida a fazer carocas, ou pelo menos antigamente ganhava, sempre tive um
bocadito de jeito mais ou menos pa’ quase tudo na construção e na agricultura,
o problema é que agora tou preso vai já para uns meses largos, mas atenção,
preso sem ser na prisão, nunca cometi crime algum senão ser pobre, digo preso
porque é como tou, eu conto.
Acontece que aqui há uns tempos me chamaram
se eu queria vir ajudar a arrancar equipamentos e coisas assim aqui ao Café
Central e eu disse que sim, três euros à hora hoje em dia não são pa’
desprezar, quanto mais aqui há meses que era quando o euro ainda valia, sei lá,
tipo uns setenta paus dos antigos quando é pa’ receber e quatrocentos e tal
dele quando toca a pagar, mas adiante, apresentei-me e fiz tudo o que ma mandaram,
arranquei tudo o que ma mandaram arrancar, arcas frigoríficas, vitrinas dos
bolos, máquina do café, os seis baixos-relevos do senhor Maximiliano acho que
Alves, era isso, Alves, por acaso até muito bonitos, tive pena, claro, mas três
euros são três aéreos e é vê-los àvoar, como eu dizia portanto arrancar
arranquei, só que no fim, quando era p’arreceber, quem arrancou foi quem aqui
me chamou, o pior inda nem foi isso, o pior foi que por causa da marosca me
trancaram aqui dentro e por isso é que eu disse que tava preso e tou e é aqui
no Café Central.
Tou aqui há tanto tempo que nem sei s’inda
é o senhor Noras q’amanda cá na parvónia ou sindé aquele da televisão que diz
mal do que se dizia que queria o lugar dele, se não é devia ser, dizem que ele
é que não quis qu’isto fechasse, qu’era uma pena, talvez por causa dos coisos
maximilianos, isso não sei nem sou chamado a saber, o que eu sei é arrancar,
construir também sei se for preciso, mas pa’ isso chamam cada vez menos ou
nada.
Ó princípio inda julguei que fosse descuido
sem maldade, mas não era, sacanitas dum raio viesse qu’os partisse, dos
primeiros quinze dias nem me posso queixar, havia uma data de latas de atum e
coca-colas daquelas de litrimeio, um português safa-se sempre mesmo que seja
sozinho, é como, com licença da palavra, o mijar, se mija um português mijam
logo dois ou três, ao menos no mijar sempre somos unidos, isso ninguém nos
tira, inda havia luz também e como descobri a televisão antiga mesmo a
pretibranco sempre fui vendo o Goucha e a Maya de manhã e o Jorge Gabriel de
manhã à noite, nem sei como é que ele aguenta tanto sem ir a casa, quer dizer,
agora sei, que também já não vou à minha Póvoa da Isenta desde antes do Natal,
às tantas a minha mulher ainda desconfia que eu fui ali ao Retiro da
Francesinha e prontos, e eu nada disso, que sempre lhe fui sério, excepto
daquela vez quando foi pela largada dos toiros em Almeirim mas isso nem conta
se vocês não lhe contarem.
Mas agora cortaram a água e tou que nem
posso, ainda experimentei mijar menos de cada vez para ver se mapareciam os
tais dois ou três e viste-zios.
Modos que era para pedir ao senhor Noras ou
ao coiso depois dele que até fez mesmo aqui a festa de candidato antes de sir
embora quase logo a seguir, agora já malembro, se podia mandar abrir isto mais
uma vez, que eu juro que desta vez é de borla, té digo mais, que desta vez sou
eu que pago a reabertura, só tem é de me dar tempo para juntar os três euros.
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