A
mesma história duas vezes
Por ocasião dos primeiros dias do ano
corrente, apareceu vadiando pelas imediações do bairro onde assentei praça para
a vida um gato. Bonito, masculino, sozinho, o todo dele parecia-se demasiado
com o nada, mercê do golpe sem mercê do abandono. Pela esplanada da pastelaria,
o animal roçava-se pelas pernas humanas dos sentados, mais mendigando afagos na
cabeça do que comida. Conto-me entre as pessoas que se condoeram do bicho,
decerto perdido de carinhos até então usufruídos. Não mostrava feridas para
além da do olhar, que catrapiscava desamparo a milhas longas. Um dia, na
passagem coberta entre prédios, apareceram duas taças plásticas, uma com água
fresca e outra com ração seca própria para felídeos. Comecei a trazer a minha
contribuição diária.
Pelos mesmos entretantos, ali-além, à beira
de uma vala que delimita a oriente um terreiro de feira, fiz outra descoberta.
Existe nesse azimute um cubículo pré-fabricado, desses que servem de guarita de
billheteira para os certames pimbas tão ao gosto da populaça de alegada
ascendência lusitana. Como o gato referido supra, também o cubículo
amanh’anoitece todos os dias em abandono. Até começar o ano.
Aconteceu que, debruçando-me eu para içar
do chão o guarda-chuva, que se me escapulira do antebraço do lado do relógio,
me foi dado sentir que a minha pluvial e proverbial solidão não estava tão
sozinha quão de costume. E não estava: reerguido, vi pela janela estilhaçada da
ex-bilheteira um homem quase ainda rapaz lá dentro. Também sozinho, também
masculino, talvez bonito quando criança com casa de pais ou mulher. Estava lá
dentro deitado, por paradoxo, entre cartões de embalar frigoríficos para se
aquecer, que o Janeiro tem andado de modos frígidos. A minha cabeça assustou-o.
Como que devassado, mirou-me em cautelas defensivas. Tivera ele asas – e estou
certo que teria despassarado dali num fósforo de tempo. Por respeito, por
embaraço também, murmurei-lhe Desculpe
e despassarei eu de chapéu, guarda-chuva e gabardina, que até parecia o Jacques
Tati. Na crónica que de imediato senti não poder deixar de escrever, guardo o
olhar dele: fulgia daquela brasa álgida tão própria dos que perderam tudo menos
a certeza de a vida ser uma estéril meretriz quando lhe apetece.
Levei-me para outra geografia onde as
chuvas não doessem tanto na almácega do coração. Tão cedo, não volto lá a
passar. Não é que eu não tenha em casa comida de gente para partilhar com ele.
O meu receio é que, levando-lhe algum pão, me distraia a ponto de, sem que ele
mo peça ou de mim o espere, ainda acabar por lhe fazer algum afago na cabeça.
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