Meninos-da-trapeira
também nós somos, enfim
A dobradiça que rangeu o pórtico da
passagem do ano 13 para o ano 14 do corrente milénio nosso fez, como é do
crepuscular costume dos ocasos, os seus óbitos ilustres e as suas terminações
anónimas.
Gente comum houve que deixou de haver por o
mar físico a ter levado. E gente outra foi levada pelo mar do Tempo, que ainda
assim não logrou, dados dela o gigantismo colossal e dela o nome claro,
roubar-no-la de todo. Falo de Nelson Mandela e de Eusébio da Silva Ferreira.
Tanto ao tribuno e estadista sul-africano como
ao incomparável sports(gentle)man afroportuguês,
muito encómio foi em boa-fé tecido, em uma impressionante universalidade que só
pode resultar do mais elementar consenso em matrimónio com o mais curial bom-senso.
Do passamento deste último, resultou-nos um baque no coração que nos trouxe à
boca o amargor frustre do golo sofrido na própria baliza, que é como quem diz,
sem nacional-sentimentalismos tolos, Pátria.
Muito a quente do acontecimento obituário
deste homem que tinha pelo menos tanto de pantera
negra quanto de gaivota branca, desta
figura que como tão poucos humanos irmanou Beleza e Graça em sinonímia pura, escrevi,
como se sobre os martirizados joelhos mesmos dele, umas breves horas depois da
alvorada triste que determinou o furto, ao colar do Mundo, de tal pérola. Estas
foram tais linhas:
Órfãos
do menino-da-trapeira desde a madrugad’agora
Leiria,
manhã de domingo, 5 de Janeiro de 2014
Órfãos
do menino-da-trapeira desde a madrugad’agora:
às
3h30m, morreu Eusébio, o grande senhor Eusébio
da
Silva Ferreira, que deixa viúva Flora e viúvo
Portugal.
Nascera
em Moçambique a 25 de Janeiro de 1942.
Chamaram-lhe
depois Pantera. Negra, naturalmente.
Vi-o
três vezes nas nossas vidas:
uma,
em Coimbra (perdeu por 2-0 com a Académica);
outra,
em Coimbra também (os encarnados deram 0-4 ao meu União);
e
outra, em Lisboa, no Cemitério do Alto de São João, tinha ele lá ido fazer as
honras a alguém do dirigismo futeboleiro, enquanto, quanto a mim, passeava por
ali lendo lápides, visitando o derradeiro sítio de Ramalho Ortigão, sentindo
coisas para escreviver.
Sinto
o mesmo, com exactidão o mesmo, que senti
quando,
no ocaso do ano 1999, nos morreu a divina Amália:
dois
colossos pátrios, duas pessoas melhores, dois artistas
de
uma época que a eles deve, em boa ho(n)ra, ser imorredoura
chamada.
(E
trapeira é bola de trapo, na terra batida da antiga
Lourenço
Marques.)
Parece-me não ter andado em grande
desacerto isto escrevendo. Lamento tão-só, a reboque de certa justíssima observação
do meu Amigo Júlio Murraças no Facebook no
próprio dia das grandes exéquias e das altas honras, não poder fazê-lo também a
propósito de todos e de cada um que este País diariamente aniquila sem ao menos
lhes volver meã a haste da Bandeira:
o idoso que comete o improvável crime
geriátrico do envelhecimento e a quem uma reforma obscenamente miserável proíbe
o medicamento paliativo e a higiene da dignidade;
o moço que incorre na insensatez de estudar
e a quem a voracidade da besta hiante do troikapitalismo interdita o futuro
agora-já;
o jornaleiro agrícola que, loucamente
contumaz no intuito de fazer das próprias mãos duas estrelas férteis, vê
impotente que e como lhe (trans)tornam as searas em campos de golfe, para exclusivo
e regalado usufruto de inúteis plutocratas que devem pensar que o pão cresce
das árvores e o azeite pinga dos intervalos da chuva;
o funcionário público “promovido” de
repente a avatar de todos os males sistémicos deste mundo e do outro, mas cuja
verdadeira origem, a dos males, reside sem discussão na chulice da corja
parasitária que tão bem sabemos quem seja mas que também não deixamos,
pontuais, de reeleger ad infinitum, à
maneira de fedelhos estúpidos que se deitam com o papão nosso de cada dia;
e toda a demais honesta gente a quem
Portugal, tirante o bom Eusébio, gosta de fazer mal porque o Bem é um luxo
demasiado requintado para desperdiçar com pelintras.
Nelson Eusébio Mandela da Silva Ferreira
nunca nos deixaram, porém, de mostrar que o contrário não só é possível como obrigatório.
Bem-hajam por isso, lá na éter-eternidade
que os não deixa morrer, como a nós deixa.
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