O
Henrique, o David e eu com dentes novos
Pode ser uma chatice, isto de acordar às
seis da manhã já vestido e na pastelaria já. À saída do transe, a vida põe-se
toda a saber a bolos de ontem e a aguadilha de café refervido. Na nublação, as
caras não chegam a rostos: parecem, antes, moedas gastas, trocos indiferentes
de nota nenhuma cujo único câmbio áureo é o amarelo do alerta-idem que há
semanas invernosamente varre o litoral continental de Norte a Sul.
A coisa agrava-se se, como segunda-feira
passada foi o meu caso, for manhã de ir ao dentista. Lá estive, de bocarra
escancarada como betoneira mole, exposto ao doutor que implacavelmente me
garimpava poços novos naquela parte do corpo que uso para urdir sílabas, cuspos
e ontens cariados. Mas estou melhor, obrigadinho, isto passa – como tudo passa.
“Toda
a gente quer endireitar o mundo; ninguém quer ajudar o vizinho.”
Assim fala um homem chamado Henrique
Moleiro. Por apreciar o que dele ouço, presto-lhe uma atenção mais por escrito.
Não faz mal que tenham dado já as nove e ¼ e que por isso seja eu o único
freguês da confeitaria, tirante a empregada, que é Deolinda e também sofre dos
dentes. Não faz mal que Henrique seja de facto Henry e Miller em vez de
Moleiro, que o que lhe ouço dizer esteja afinal escrito em Max e os Fagócitos Brancos, prosa que escancarei no tampo da mesa,
à maneira da própria boca no trono reclinado do odontologista, para melhor
suporte meu da realidade dos outros.
Faz-se entretanto horas-de-não-sei-quê. No
entrementes, chega o David Jornaleiro com
os jornais do dia para leitura gratuita dos fregueses. A Deolinda dá-lhe a
esmola discreta do galão-pão-com-margarina, esta afinal sempre ajuda o vizinho ao contrário do que o
Miller diz, o David é vizinho de toda a gente por ser sem-abrigo, isto de
entregar os jornais pelos Cafés e de andar aos recados é um favor que lhe
deixam fazer a troco do pão-margarina de cada dia. O mundo que se endireite por
conta própria, afinal o David sempre faz pela vida, que a esperança pode ser a
última a morrer mas cada um de nós é o penúltimo a fazer o mesmo.
O jornal traz a doutrina do costume: ex-maridos
que, possessos de furioso ciúme venatório, caçadeiram as ex-mulheres,
multibancos estoirados à botija, velhotes que, como pescadores em terra,
amanhecem afogados dentro de poços a céu-aberto (como a minha bocarra no
dentista segunda-feira passada, já não me lembro se Vos falei disso já), baixas
mortais da guerra civil em que o trânsito rodoviário se tornou, Cavaco
escrevendo Direita por linhas mortas. E São Cristiano Ronaldo, espécie de anjo feliz com lágrimas que, na esteira
multigloriosa de Santo Eusébio, nos reitera o rotativismo monárquico-geracional
do “rei morto, rei posto”.
Vale-nos, de França, que uma certa errante
fragrância parisiense de sedosas saias e de anáguas emanuellianas, com furtivos motociclos abandonando de madrugada o
ninho-de-amor à mistura, nos chega das peripécias com uma actriz até jeitosinha
frequentada a nu pelo senhor presidente gaulês, monsieur que, por se chamar Hollande, sempre dá outro prospecto erótico
a moinhos rouges e a tulipas abaixo
do nível do mar em plenos Champs Elysées.
Nos arredores tristonhos desse divertimento com Tour Eiffel ao fundo, aqui a maltosa cá vai aprendendo inglês pelo
lado mais dark da moon, que é como por mania os Bifes chamam a uma coisa que se vê logo
ser a Lua. Exemplos desse poliglotismo: bullying
escolar (suicídio do miúdo de 15 anos no concelho de Braga), carjacking (com fartura e por todo o
lado), rating (agências ratonas de
Wall Street em desprezo total pelas Constituições ex-livres e ex-democráticas
das nações), spread (manigâncias tipo
usura-à-BPN), swaps (tipo papagaio-louro-de-bico-amarelo-põe-as-pensões-pobres-dentro-dum-chinelo):
e tudo isto com sotaque à Lauro António, tipo léte-se-lu-két’da-trêila.
Indiferentes a tais apuros apenas humanos,
porém, a Grande Roda do Tempo marcha em ímpia surdez rumo ao próximo Natal via
Época-de-Incêndios-Caça-ao-Bombeiro-do-Verão. Que até lá, enfim, nos não doa
fisicamente a cabeça. Ou os dentes. A mim de certeza que não, digo os dentes,
que por essa altura já não hei-de ter nenhum dos naturais, por tê-los estragado
com bolos tão de ontem como a vida, mas sim daqueles que fazem do sorriso um
pequeno milagre feito de resina acrílica, cuspinhenta e silábica, ó Deolinda.
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