Só
para pobres
Era uma vez uma casa tão pobre, que até os
buracos do telhado eram emprestados.
As pessoas entravam de costas porque não
havia como dar a cara a tanta miséria. Era sempre Inverno naquela casa, de modo
que se podia ir lá dentro ver se estava a chover. A humidade era tanta, que até
os ratos tossiam. Pai, mãe, avó e crianças odiavam-se a uma só voz, roubando
uns aos outros até o ar da respiração. Era má ideia morrer ali, talvez porque
no dia seguinte nunca havia funeral, mas cozido à portuguesa. Naquela casa,
tudo acontecia em câmara-lenta. Uma frase dita hoje só era ouvida dois meses
depois, chegando as palavras pela ordem errada e cheias do bolor da demora. Depois,
era preciso raspar os substantivos com uma faca para que se não parecessem tanto
com papéis rasgados. A vida era uma coisa tão assustadora, que até as crianças
esperavam a um canto que ela passasse sem as ver. E mesmo o sol, cujo
nascimento, a par da morte, dizem ser a melhor democracia, chegava cor-de-café
àquela casa irremediável. O próprio Tempo era outra coisa. Um mês, ali, não
tinha trinta dias, mas sessenta noites.
E sem lua eram as noites, pelo que os
lobos, sem terem a que uivar, enlouqueciam de mudez. Nas trevas perpétuas, os
olhos brilhavam como pirilampos cegos de sal. Enguias fosforesciam no veludo
frio do pensamento. Sobre a mesa, o fantasma de uma galinha punha ovos negros. Ao
lado, um machado vibrava sem que lhe tocassem. No chão, dormia a sombra de um
cão que não estava lá. Um dia, o país onde essa casa ficava, mudou de governo. Os
novos governantes eram muito boas pessoas. Muito sérias, muito missa-das-onze,
muito cuspifalantes. Resolveram tudo lindamente: Impostos, Justiça e Educação,
Saúde, Emprego e Administração, Circo, Tropa e Europa, Comércio, Indústria e
Ambiente, Futebol, Andebol e Parapente, Literatura, Ortografia e Saneamento,
Agricultura, Previdência e Planeamento, Suinicultura, Autonomia e Vaca Fria –
tudo ficou um brinquinho. Visto do céu, o país brilhava de exposições
universais e europeus de futebol. Visto de lado, o país exibia um perfil de
imperador romano. Visto de costas, o país nem parecia ter cauda. Visto de
frente, era isto que vos conto. Pronto, enfim, as coisas foram andando, o
totoloto saindo, a pedofilia entrando, o amor cada vez mais lindo, os pombos
arrulhando, o eurodólar subindo, o preço do pão baixando, os ucranianos
sorrindo, as baleias aumentando. Restava, no entanto, um problema. O problema
restante era o problema da Pobreza. Quando chegou a vez da Pobreza, o novo
governo comprou um catrapilo assim muito grande, muito poderoso e muito amarelo.
Uma espécie de dragão mecânico com S. Jorge a conduzir. Vai daí, o governo
mandou arrasar tudo, erradicando de vez essa purulenta chaga social. A Pobreza
deixou de existir para sempre. Materialmente arrasada, a Pobreza tornou-se um
caso mental.
Era uma vez uma casa, era uma vez um país.
Quem tossir, é rato.
2 comentários:
E se houver muitos a tossir?? E se os ratos tossirem tanto e com tanta força até a casa abanar?
Ãcho bem, Malena. Ratemos todos juntos.
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