05/11/2010

Rosário Breve n.º 179 in O RIBATEJO - 5 de Novembro de 2010 - www.oribatejo.pt


Em carteira





Esta que vos conto, senhoras e senhores, é verdadeira a ponto de, dela, vos jurar a veracidade pelas vidas das minhas filhas.
Coimbra, sexta-feira, 29 de Outubro de 2010. Oito e cinquenta e três da manhã. Compro o bilhete para o expresso que me vai levar a Santarém. Saio da Rodoviária. Atravesso a Avenida. Tomo café no Silvano. A bexiga telefona-me, pago a bica, subo as escadas que levam ao urinol. Um senhor de casaco castanho lava as mãos. O cubículo é exíguo, espero cá fora que ele termine. Ele termina. Sai. Eu entro. Antes de me desfazer da função, descubro-a. No rebordo da janela, uma carteira. Abro-a. Documentos e muito dinheiro dentro dela. Muito dinheiro, quero dizer, cinquenta e tal euros. Dez contos e tal, portanto. O Diabo, célere e atentíssimo, sopra-me ao ouvido direito: Fica com a nota, pá, deixa o resto aí, encontrar não é roubar.
Faço assim: tiro os óculos do bolso, ponho os óculos, consulto um dos documentos para saber o nome do senhor que lavou as mãos. Manuel qualquer coisa. Desço as escadas. Procuro o casaco castanho. Encontro-o à porta da Segurança Social. Digo-lhe assim: O senhor desculpe, eu sei que é uma pergunta esquisita, mas como é que o senhor se chama? Ele responde-me o nome certinho: Manuel qualquer coisa.
Devolvo-lhe a carteira. Deveríeis, senhoras e senhores, ter visto a cara do homem. Agradeceu-me profusamente. Julgo ter descortinado certo cristal líquido em suas retinas, não vo-lo juro.
Vim para Santarém, o que é sempre boa ideia. E a caminho da terra onde todas as sextas-feiras vos entro pelos olhos, então, o meu Pai, apesar de falecido há 16 anos, usou de mim o ouvido contrário ao do Diabo para me dizer isto e assim:
– Fizeste bem, filho. Não sejas como o Governo.

5 comentários:

K disse...

Grande Daniel,

o teu Pai sabe(s) o caminho certo que a gente de bem deve seguir.

O nome completo do beneficiário não é bem Manuel Qualquer Coisa; é Decência. As lágrimas que descortinaste (não juras) são de espanto. Porque este tempo não está preparado para coisas assim.

O teu concerto perturba o desconcerto do mundo. (E o mundo, esse, visto dali da crónica, parece ainda ter conserto.)

Abraço.

QJ

TC disse...

ÉS UM GRANDE ANJINHO!

ASSIM, COMO VAIS APARECER NA TELEVISÃO?

G disse...

Muito bom. Adorei o remate.
Bj.

Anónimo disse...

Já não há Cão como antigamente. Tás a perder qualidades, mene...
Tapor

Anónimo disse...

No urinol, todos somos iguais. É o canto em que se desfazem desigualdades e nos despimos para os instintos básicos de sobrevivência humana.

Fora do urinol, só é humano quem pode e quer. Aqui foi mesmo uma questão de querer ser, humano.

Abraço
CSA

Canzoada Assaltante