27/05/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (1)






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25 de Maio de 2009


Somos eus consecutivos.
Perdemos aqui um pouco de cálcio, um tanto de ferro;
vencemos além uma palavra feliz e suficiente como uma lâmpada de rua em pleno Inverno.
Muitas vezes, mãos inquirem seda por nós, enquantomente rajadas de música vergastam o coração auricular da nossa eterna mocidade, essa quando se recebe música.
Uma praça sem gente conspira décadas e pombos, rente à febre do frio que grassa na igreja, atrás da que um jardim infantil atende violadores e portugueses.
Um dos eus quase não suporta tanta felicidade, uma vez dono e senhor da resignação: tinha sido pontual na repartição de finanças, onde declarara rendimentos de um ano qualquer dos da vida.
Um de nós viu esse eu ser um ele: corpo corredor no basalto que a luz expande em camadas para uma insignificação geo & antropológica.
A sexualidade já não hasteava bandeirações eólicas, o pecado, a havê-lo, seria não pensar: isto é: não receber a remuneração em imagens, em música silábica, em hordas ciganas juncando de lixo caminhos de cabras.
Esse eu assim: dorme no meu corpo quando escrevo, quando escrevo uma carta ou uma crónica ou uma ameaça poética qualquer.
Isto é: ou coleccionar diamantes ou escutar Nemésio reportando o susto de Camilo e Ana ante a janela raspada de ramos na madrugada glacial.
Isto, antes da brutalidade terminal, do médico amigo que a um dos nossos eus condenará à morte e à vida, chovendo na tal praça com igreja e sem gente e com pombos.
Recordar para a frente como quando se anda ao vento, com exuberância e exaltação: e feroz euforia, ao vento de comboios e tardes cinzentas como burros tristes: e de boca recortada a celofane no frio, o frio que por vezes parece um país entre onde se está e casa.
Outro dos eus suportando em silêncio no café a presença hipervocálica e hiperbólica de uma mulher bêbeda e portuguesa, avó do bairro social, que arenga bojardas morais sob o heliventilador do estabelecimento, bêbeda de vinho e de moral, ataúde vivo de beatério e bifes de cebolada, monte uivante de varizes retesas de tinto tónico, a garra esquerda enclavinhando um neto de carita envernizada de ranho por assoar, um petiz infeliz de caramelo no nariz, uma segunda-feira de temperatura avariada, nesta vida.
Isto; e a Escola de Mecânica da Marinha em 1959 recebendo a visita do ministro da salvo erro Defesa Nacional, nas escolas desse ano o tifo do século português e a anemia do milénio lusitano e a estupenda Nação cancerígena por-Cristo-com-Cristo-em-Cristo.
Como quando o leitor se interroga que quer tanta treta dizer que não diz, como se esse eu-leitor se auto-impusesse um inquérito absorto, apreensivo, à beira dos nervos da desistência.
Nada a fazer: a fria segunda-feira esparadrapa seus cromos, suas ventilações, seu recado na mercearia, sua frágil farmácia.
Um dos que somos em transe: quase aflito ante a beleza do busto verde-cinza da pomba que caminha como se medisse o chão, tão fortemente bela e sozinha na tarde que declina: sim, por vezes a beleza aflige o coração, nem todos assim somos, alguns de nós sim.
Menos uma hora nos Açores, antes da noite as mulheres resgatam comida dos dispensários, nas casas ainda vazias as faianças estalam rumores vidrados, nos campos de arroz cegonhas crucifixam-se sem outra fé que a da eterna mocidade da música visual, acaba a tarde, a vida não, não ainda, ainda não é tarde.
Ter sobrevivido não era a pior das prendas, sabendo-se o quão antropólogas são as décadas e as segundas-feiras: e o quanta volúpia é preciso gastar para merecer um nome, uma cadeira na barbearia, um telefonema.
O escândalo da morte resulta de nunca deixar de parecer prematura, diz um dos eus acendendo o cigarro, vendo que vai chover não tarda nada, fechando-se no casaco que em boa hora se lembrou de vestir ao sair de casa esta, ou outra, manhã.
E por momentos ninguém morre, nem aqui nem nos Açores, uma criança afia um lápis, uma velha faz-se gelo no retrato alto da janela de terceiro andar (há brasileiros no quarto e no quinto).



3 comentários:

Paula Sofia Luz disse...

Lindo, lindo.

fj disse...

eia! esta foto parece mesmo uma coisa a sério e tudo.

xana disse...

A foto está uma composição bem conseguida e inspiradora, quer nos motivos, quer na composição, quer na cor e sobretudo na mensagem, escrever é uma labuta que imagino assim como a ilustra. Continuai a boa e árdua tarefa, está deslumbrante este Post.

Canzoada Assaltante