13/05/2009

ESTE LADO PARA CIMA - 5 - in Jornal de Alcochete / Correio do Montijo

Quarto fechado sem cortinas

Vivemos tempos pardacentos. Receio bem que o futuro nos julgue gentinha amorfa, indiferente, acrítica e, como o presente, pardacenta.
Os direitos laborais foram cano a baixo, enxurrados pelo desemprego em massa. A liberdade de opinião, por outro lado, de pouco vale a quem, como nós, não tem opinião. Os jornais empilham pequenos e grandes crimes contra a pessoa, a sociedade e o mundo. A ecologia global anda pelas vielas da amargura. A fantasia das crianças é uma invenção da literatura infanto-juvenil de origem nórdica. O Pai Natal se calhar é mentira. E (est)a realidade também.
Se vos pareço hoje peculiar e particularmente amargo, deve ser por causa de ter visto alguma televisão, não sei, talvez. Depois de jantar, adormeci no sofá. Acordei à boca da noite com a digestão atrofiada por um sonho medíocre. Levantei-me debilmente, esfreguei a cara com água fria e vim escrever a crónica: vai-me saindo pardacenta.
Vale-me que tenho ali um livro bom para ler. É policial, tem um enigma de quarto fechado em cujo interior as personagens morrem em menos de duas horas. Está bem imaginado, bem urdido, bem escrito. Serve-me às mil maravilhas para me evadir da evidência da realidade.
Preferia, porém, não precisar de ler para, fugazmente embora, esquecer que existo nisto, neste quintal magnificado sem merecimento pelo sol atlântico. Preferia não chamar pardacento ao nosso tempo. Preferia não adormecer nem no sofá nem na vida.
Amanhã talvez seja outro dia, enfim. Tenho mais livros. Comprei uma couve gorda e viçosa que é bem capaz de dar uma panela de sopa à maneira. Mudei de marca de comida seca para as gatas, a ver se elas tossem menos pêlos enrolados na garganta. Ainda não mudei os pneus ao carro, qualquer dia lixo-me com uma multa que é um mimo. Declarei o IRS a tempo e horas, bonito menino. Ainda não decidi se sim ou não vou votar nas europeias. Fiz recentemente amizade com um casal de vegetarianos. Não professo religião, mas também não atropelo peregrinos de beira-estrada. Porto-me tristemente bem em quase todos os aspectos. Como vós, decerto, também.
Tenho de arranjar uns cortinados para esta divisão. Falta-me uma estante na sala para os policiais. Devia adquirir dois anti-vírus eficazes, um para o computador e outro para a minha vida.
Ainda só vou na página 27, não sei que diabo vitima as pessoas naquele malfadado quarto. O telefone não tocou todo o dia. Ainda não é amanhã. Se vai estar de chuva ou fazer sol, não sei, talvez.

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Canzoada Assaltante