30/06/2008

Vejam isto


Pessoal: ide ver isto, pf. Foi a minha rapariga quem fez, fotos e texto:

http://www.anoiteceraotomdela.blogspot.com/

ACONTECIMENTO DE SOMBRAS – um decálogo para trabalhadores do comércio

ACONTECIMENTO DE SOMBRAS
– um decálogo para trabalhadores do comércio


É provavelmente da idade, mas é também verdade factual: cada vez sinto mais que em vez de ganhar a vida o bastante para ter hoje aquilo que de que em seguida vos falarei, a fui e vim perdendo. Trata-se de um pouco de terra onde plantar uns legumes e umas flores. Não tenho. Em vez de tanta versalhada na corneta, quem me dera fazer crescer o cardíaco tomate, a alface rendilhada pelo orvalho, a honesta batata, o pranto feliz da cebola – e algumas rosas. Não. É verdade que tenho a pré-garantia, como todos temos, de um pouco de terra. Mas essa é na vertical, coisa em que, não sei porquê, não estou interessado.
Enfim, hoje trago-vos este decálogo . É quanto posso plantar.
A fotografia foi tirada, já este ano, pela Sandra Bernardo.


Viseu, Café Paris, tarde de 28 de Junho de 2008


1. DEMÃOS

A pobreza económica não se torna mental
enquanto as mãos contiverem as mesmas mãos
nas mãos.
Mesmo muito pobres, podemos esculpir
o outro corpo com as mesmas mãos nossas.
Podemos mudar pedras de sítio – e então é
cidades quanto fazemos
com as mãos mesmas
nossas.

As mãos são-nos as mais mentais coisas que temos para
nós mesmos.



2. ACONTECIMENTO DE SOMBRAS – I

Acontece muitas vezes: a sombra de uma mulher ser
a luz de um homem.
O contrário, não sei.
Falo por mim.
Falo por mim numa língua que já era e será
depois e antes do que falo
para ser.
Pode ser que a minha mesma sombra ilumine
alguém, não sei.



3. SUBURB’ANAL

Levei já, na e da vida, tanto pontapé no traseiro,
que passei a usar atacadores no dito.
E é assim, suponho, que está bem.

Nos subúrbios cresce a cogumelaria empreiteira.
Casalinhos utilitários canarinham em tê-zeros.
Há pizzarias que napolitanam imitações fatiadas.
A vida suburbana desassoalha-se a si mesma.
A rapaziada divorcia-se p’ra casar com outras gajas iguais
às anteriores, o mais é mudarem de zeros e de tês e de tus.

Também já escoicinhei o cu à vida, olha quem.
Não sou gajo de me ficar: é da efemeridade,
efémero nome da eternidade de que sou capaz.

Já ninguém oferece lírios ao próprio corpo.
O corpo gostaria de recebê-los, mas já ninguém.
Há bebés que parecem lâmpadas, não há? Sim.
Gosto de ver a comida nos mostradores das tabernas.
Já me aconteceu ouvir música em olhos.
À noite, gosto de ir à pizzaria canarinhar a vida.



4. ANIMAL DE TIRO

A criança em nós tornou-se um dia animal.
Tornou-se igual às outras crianças.
Anda atrelado aos problemas económicos, o animal.
Um prato de tremoços anestesia-o mais ou menos.
O animal morre de enfarte de domingos vazios.
As impurezas acossam muito, muito caçam.
Tiros na cabeça fomentam a indústria do mármore.
O nosso animal atira à cabeça da nossa criança.



5. ACONTECIMENTO DE SOMBRAS – II

Sou capaz de distinguir numa eterna fracção de segundo
as pessoas que são filhas de outras pessoas
das que não,
nunca foram,
nunca serão.

Tenho esta habilidade por causa dos reflexos das montras:
habituei-me a ter o rosto entre relógios, roupas, morcelas.
Nas minhas costas (à minha frente, portanto) passam:
as pessoas que são filhas de outras pessoas
e as que não,
nunca foram,
nunca serão.

Isto tem-me conferido uma certa aura, também vo-lo digo.
Uma certa oraculidade, vá lá.
Até a minha Mãe me distingue de outras pessoas,
por isso já estais a ver.
E ela foi filha de outras pessoas, não é como
as que não,
nunca foram,
nunca serão.

A sombra da minha Mãe é a minha luz,
como não?
Sempre foi,
sempre será.



6. POSSESSIVA, ELA

Quando algum de nós diz

a minha morte

nunca aplicou tão bem

o possessivo.



7. REGRESSO DA SENHORA DE PRATA

Uma senhora minha conhecida tem por costume
alimentar de prata, à janela, quem passa
para morrer um dia mais.

Conheço-a dentro da cabeça, onde só existe,
o que sempre a poupa de finanças e salva de merdas.
Nunca foi bebé de ninguém: nasceu velha já,
já de prata, entre rendas e gazes de janela,
vendo passar quem passa
para viver uma noite menos.



8. IGUAL

Relicário das tristes formosuras,
fogueira na noite de outro Verão,
meu coração dá-se todo a usuras
por cinza ser sua mesma condição.

Não é triste que assim seja.
Nem é nada de outro mundo.
É decerto igual, no fundo,
a quem for gente que o seja.



9. FALO-VOS AGORA DELA, ANTES QUE REGRESSE

Aquela pessoa é gaja para ser humana.
Acho-a de extrema beleza, mas pode ser que seja
destas merendas de vidro a que ocasionalmente me dedico
para versejar.
Falar-vos-ei agora dela:

ombros de arquitectura tostados ao sol das janelas;
mãos preênseis: e pensativas;
coxame roliço, estremecedor de próstatas;
pés mais ‘inda nus por em brancas sandálias brandas;
costas para palmar cartograficamente;
botão anal defendido por lácteas cordilheiras;
olhar bicolor à transparência solar (mesmo de noite);
unhas de lúcida cerâmica, das que cortam;
as ditas sandálias, de um couro de animal por nascer;
um dia será senhora, e de prata, à janela;
por enquanto, não.



10. MIX

Peço-vos agora que tudo se misture.
O truque poético é deveras simplicíssimo:
uma sensorial espécie de sinestesia idiomática.
Certo?
Vamos nisso:

um monte horizontal corrido a homens-pais;
cães a falar em salas amarelas, mas pretas
no c(h)ão como o céu-da-boca dos cães;
uma cara com duas letras em vez de olhos;
olhos vogais e olhos consoantes;
flores carnívoras serradas por peixes;
mães antigas (muitas) constelando mapas de perder;
mãos antigas (poucas) mapeando perdidas constelações;
veias vegetais onde palpita o açúcar;
a força mosaica das leis e dos roubos;
corar ser um marisco facial;
o Vaticano de repente a meio de uma frase;
um pénis de caramelo mas com muita confiança no senhor;
colecções de pedrinhas em gavetas de vidro;
gente ao vento como folhas orais;
um penso de nicotina colado a um defunto;
algum amor tão bem tirado quão uma fotografia;
o poder involuntário dos mortos que fumaram em vida;
a sequência de luzes labiais na escuridão dos surdos;
um tempo português sem ser contra a comunidade internacional;
o cheiro a madeira dos lápis e da escola primária;
uma mulher pagando a um homem para estar sozinha;
a luz verde dos relvados
(mesmo de noite);
o naufrágio de Sepúlveda e o nosso;
espigas de trigo estilhaçando um vitral de igreja;
o frio dos santos aquecendo a fé das baratas;
as crianças que gritam velas;
os calções tatuados a poluções nocturnas;
a desistência traduzida em português por resignação;
álvaro-de-campos fingindo-se de rap-hip-hop;
e os tomates a galope;
certos cruzamentos da nossa vida com a vida da noite
(mesmo de manhã);
factos que se volvem retratos, açúcares é que não;
mix;
o meu amigo João em Londres sozinho como o céu;
uma prata feita janela para se armar em senhora;
os pirilampos no coração perante um homem-pai;
o homem-pai caligrafando espargos e cães amarelos;
a beleza rimar com a tristeza;
a morte ao pé da morte e a vida ser o outro pé;
num teatro-perto-de-si-a-peça-nenhuma-de-si;
o florilégio acústico dos nossos irmãos, sim;
a capachina coça-sola nos pés-sapatos;
a vulgaridade benigna dos tremoços e do sal grosso;
um fim de tarde queimando tanto desamor, em junho;
matas o gajo ou deixa-lo viver anteontem?
um acontecimento de sombras (III);
o livro da idade é liberdade;
eu uso sempre respeitinho, mas tusso do peitinho;
morangos rápidos numa praia de estufa;
natações de cloro-crianças;
a espera paciente, mas o doutor demora,
aquele cheiro das urgências-ambulâncias;
a súmula de umas horas suadas nos pés;
a pequenina dor que mata para velório de anões;
as rulotes das farturas fritando cassetes de Roberto Carlos;
a pessoa sozinha no palco sendo todas as pessoas;
o toque vespertino da velhice mais matinal;
golpes de vento noruegando barcos de gelo;
o corredor das gatas de caprichosos úteros;
a mania de morrer às dez e meia da manhã
(mesmo de noite);
e a pedra sublingual de sal no idioma,
como se nada fosse, nem fora,
uma sombra acontecida,
por e para mor, e vossa,
ilustração.

Sim.
Mas.

28/06/2008

Uma Espera como as Outras, em Prata

Viseu, Café avenida, tarde de 27 de Junho de 2008





Qual a cotação da chuva no mercado da solidão?
Saio diariamente à rua a tentar saber.
Desço o comércio para subir a casa.
Perco-me diariamente de casa.
É quase sempre novembro, mas foi num outubro que a vi:
a senhora de prata à janela.
Ela cegava para a chuva vidente.

Agora recordo, agora espero a sabedoria.

27/06/2008

Uma para Quatro

Esta semana, por escassez de tempo (ida a Lisboa etc.), é comum a crónica para os quatro títulos da Sojormedia (O Ribatejo, Região de Leiria, Jornal da Bairrada e Jornal do Centro). Aqui fica.



QUALQUER DIA

A vida é demasiadas vezes como ouvir o Marco Paulo cantar “virá um dia qualquer / tu serás a minha mulher”. Toda a gente sabe que não. Não, nunca na vida. E a vida é demasiadas vezes “nunca na vida”.
Vale que, ocasionalmente, nem sempre. De vez em quando, a circunstância permite-nos a instância de circo. O trocadilho justifica-se, fracamente embora, sempre que nos ocorre a inteligência de assistir por fora às loucuras, às divertidas loucuras do mundo. Tenho tantos exemplos, senhores. Tantos modelos, senhoras.
Ver a Paris Hilton a tropeçar numa grade. Escutar o Joe Berardo sem ser com cara de gozo. Comparar a rigidez lacada dos penteados de Cary Grant e do José Veiga. Aparar as unhas dos pés às meninas da Ribeira do Sado e ao Pinto da Costa. Deselectrificar a realidade terrena e habitar o paraíso acústico (ou “unplugged”, segundo o novo Acordo Totográfico) do nosso Primeiro. Ser homem, ir a um cabeleireiro de mulheres e ouvi-las falar do nosso Ronaldo com molho à espanhola. Contar pássaros ribeirinhos numa tarde de chuva em pleno Verão. Ver a Amy Winehouse a tropeçar numa grade. Saber que aquela senhora da ASAE foi demitida por ser minhota e confessa matadora doméstica de galinhas. Fazer o rácio entre o dito, o feito, o fito e o deito. Traçar um gráfico estatístico número de desempregados / número de cafés ligados à TVI. Conter a sexualidade a partir do que dela nos indexam os senhores padres. Dar o dízimo aos (mas não dizimar os) “bispos” brasileiros. Ir a Alcochete falar francês. Descobrir uvas no Cartaxo. E acreditar naquilo que o Marco Paulo canta, mulher, mesmo que, como o nosso Primeiro, a vida nos pareça “unplugged”.
Isso e contar pássaros ribeirinhos numa tarde de chuva em pleno Verão, num “dia qualquer” como na canção.

26/06/2008

Quatro Sítios Necessários

António Quadros Ferro: http://cadernos-amf.blogspot.com/

Miguel Martins: http://omeninomiguel.blogspot.com/

Revista Criatura: http://www.revistacriatura.blogspot.com/

Diogo Vaz Pinto: http://omelhoramigo.blogspot.com/

Ida e Volta

Na estação e no comboio:
Mangualde – Pombal – Mangualde,
manhã de 20 e tarde de 23 de Junho de 2008



A QUESTÃO

A questão é o coração.
A questão é o coração poder.
A questão é o coração poder não poder
com os quilos físicos que o amor lhe
carrega em cima.

A questão é o coração.
A questão é o coração ser.
A questão é o coração ser o que é.
O que o coração é
é ser rasgável como um papel.

Uma pessoa pode morrer de papéis rasgados.
Uma pessoa pode passar a vida a rasgar papéis.
Pelo coração é a pessoa trazida.
Levada é a pessoa pelo coração.

É essa a questão.



ROUPA

Dentro do meu corpo está um homem vestido de mim.
Não sei porquê.
Não sei para quê.

Sei que é tão-só,
tão só,
mais um gajo.



O POEMA ANTERIOR

Peço muita desculpa mas
o poema anterior
não é do lobby homossexual.

É tão-só,
tão só,
mais um poema.



ALÉM

Sempre me pareceu que, por causa do coração, o amor,
e por conseguinte o amar,
tem muito pouco a ver com copular.
Pode por lá passar,
mas vê pouco do que por lá se passa.

O corpo é uma coisa para sair à noite.

O amor é o além da saída.



PÕE-TE A FANCOS

Põe-te a fancos da minha vida,
ó vida.



AVALIAÇÃO DO PROCESSO COGNITIVO

No dia 1 de Novembro de 1981, um gato forasteiro
matou-me o pardal que por seis meses criei
em casa.
Hoje, tenho duas gatas em casa e nenhum pardal.

Aprendi.



AMIGÓPTICOS

Tenho alguns amigos.
São como os meus olhos.

Tenho alguns amigos que
são como os meus olhos
porque nunca os olho mas
preciso tanto deles.



THE OTHERS e LES AUTRES

Há quase trinta anos
um amigo disse-me que
a mulher combatente tem de saber rolar de costas
como as outras.

Ainda hoje estou para conhecer as outras.



FILEIRA

A mais bela ironia é a da beleza.
Assisto-lhe muito.
Uma pancada verdescura de árvores ao sol.
Um rancho de raparigas branquejando na aldeia.
Uma fileira de laranjeiras dando-não-dando-dando-não-dando.
Um gomo de água rebentando na boca.



O. A.

Ganho tão pouco a vida,
que não fazes ideia,
senhor meu,
da despesa a pagar,
eu,
por teres ido
noutro comboio
que não este.

Eu por mim agora sozinho como um cão,
ora se te fosses lixar.

Há coisas que não se fazem.
E tu agora na mesma, como
se não fosse nada contigo,
ora agora.

Vê.
Lê.
Sê.
Ora agora.



LAGÓPTICA

Verdes ainda verdes campos.
A minha vida ante eles ainda.
Pêssegos, cavalos, pirilampos.
Lagoa-olho molhada e linda.

A cegonha larga que giza.
O batráquio mui patriarcal.
A tarde, o tempo, a hora que desliza.
E os arrozais do nosso Portugal.

Ali uma criança morena.
Ali o revisor aborrecido.
Segunda criança ali mas mais pequena.
E às vezes morrer sem ter nascido.

A luz do sol, essa cal total.
Os apeadeiros com as letrinhas da tristura.
E os arrozais do nosso Portugal.
E dormir em pé a toda a largura.



SOMOS DONOS DAQUILO A QUE PERTENCEMOS

Sou dono de um rio.
Chama-se Mondego, como um cão.
Sou dono desse cão de água.
E pertenço-lhe, à passagem.

Capa


A capa de Terminação do Anjo ficou esta.
Para já, há na Sá da Costa, ao Chiado, em Lisboa.
Brevemente, andará pelo mercado.
Deixo aqui registo gratificado da presença de tantas pessoas no passado dia 24 de Junho.
Muitas outras pessoas não tiveram possibilidade de ir ao lançamento porque era terça-feira, dia de trabalho. Por vários meios, no entanto, tornaram-se presentes. Sinto-me muito, muito honrado com / por todas.
D.A.

24/06/2008

Abraço crónico

Vemo-nos hoje no Chiado?
Às 18h30, na Livraria Sá da Costa, em Lisboa?
Está bem.
Deixo-vos duas crónicas para a viagem, então.
E aquele abraço.
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Rosário Breve - 57 e Contra os Canhões - 12


CRIME, DISSERAM ELAS

Faz por estes dias 54 anos: no dia 22 de Junho de 1954, duas adolescentes, Pauline Parker e Juliet Hulme, assassinaram a mãe da primeira. Com um tijolo envolto numa meia, esmagaram-lhe a cabeça num parque da cidade de Christchurch, onde residiam, Nova Zelândia. Foi um crime longa e minuciosamente planeado pelas duas. “Tinham” de levá-lo a cabo por causa da estranha ligação que as colava (e clonava) uma à outra.
Tinham 16 anos, Pauline, e 15, Juliet. Consideravam-se diferentes, naturalmente para muito melhor, do resto do mundo. Um poema de Pauline, escrito por esses anos interiores e herméticos da adolescência, assentava que elas eram “os mais gloriosos seres da Criação”. Nada menos. E mais (traduzo): “É um milagre, deveras tem de se sentir,/ que tais duas celestes criaturas possam existir.” (Nota: “Heavenly Creatures” deu título de filme em 1994, com Kate Winslet, a mesma do “Titanic”, no papel de Juliet).
Estranho e trágico: antes do crime, ambas tinham a certeza de que tudo quanto então escreviam só poderia ser aceite de imediato, e com entusiasmo, pelas principais casas editoras de Nova Iorque. Daí a convites para adaptação de filmes em Hollywood, seria um minuto, um brevíssimo instante de pura luz. Não foi.
O problema era que o pai de Juliet, um eminente físico universitário, quis ir trabalhar para a África do Sul e, claro, levar consigo a filha. A mãe de Pauline opôs-se a que a filha fosse também com eles. Morreu disso.
Descobertas, as raparigas estiveram presas cinco anos. Libertadas sob condição de nunca mais se reverem, cumpriram a condição.
Pauline vive hoje em Inglaterra.
Juliet foi para os Estados Unidos, tornou-se mórmon, vive hoje com a mãe (dela) numa comunidade isolada (Portmahomack) da Escócia. Mas já não se chama Juliet Hulmes. Tornou-se Anne Perry, aclamadíssima autora de romances criminais de excelente qualidade. Por exemplo “The Face of a Stranger” (“A Face de um Estranho”, na edição portuguesa da Gótica), entre muitos outros enredos situados na decadente Londres vitoriana da década de 1880, a Londres dos nevoeiros e dos brutais crimes de almanaque popular. São livros óptimos para filmes.
Juliet sempre chegou a Hollywood.
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Bairro Nosso - 5 e Crónica Mundial - 7
http://www.jornaldocentro.pt/

ALCATEIA NO POVO

Falando de Humanidade, nada há de melhor do que o povo quando é Povo. Mas quando se torna Populaça, não é Povo: é Alcateia.
Por todo o mundo, em todas as comunidades, de todas as cores e de todos os credos, isto é uma verdade insofismavelmente histórica e historicamente insofismável. Voltou a ser verdade na segunda-feira, 16 de Junho. Deu-nos disso conta o jornalista José Miguel Gaspar, no Jornal de Notícias de terça, 17.
Simone, de 21 anos, rapariga da freguesia de Semande, concelho de Felgueiras, raptou um recém-nascido no Hospital Padre Américo, em Penafiel. Foi descoberta quatro horas depois. O bebé foi devolvido aos pais, Simone foi entregue ao tribunal, autoridade que, dia 16, lhe determinou prisão domiciliária até julgamento.
Cá fora, a populaça esperava gulosamente por ela. No intervalo dos jogos da Selecção, convém ter alguma coisa que fazer: por exemplo, “justiça”. Gulosa, inquisitorial, ávida, mirone, judiciosa, vigilante, mortinha por interferir, uma mulhereca qualquer, à saída da raptora, gritou-lhe (cito, com a devida vénia, o relato do jornalista do JN): “Badalhoca! Badalhoca!”. Juntou-se-lhe logo outra, muito excitada, como se estivesse no Rossio de Lisboa há 500 anos a dar uma mãozinha à queima de cristãos-novos: “Não mostras a cara, é? Ai, agora tens vergonha?! Deviam era chegar-te lume!”
Não ponho minimamente em causa a gravidade do crime praticado por Simone. Pior do que este, só violar e matar uma criança. Aqui afirmo, aliás, o que decerto é sentimento comum a toda a gente de bem: todo o crime contra uma criança é crime contra toda a Humanidade. Mas sublinho: contra a Humanidade-Povo, nada a ver com esta populaça reles e “justiceira” que, ao cabo de “chegar lume” às tristes e descompensadas simones
(que do mesmo povo provêm, afinal), volta para casa muito gaiteira para assar chicharros, mamar carrascão e dar tabefes nos próprios filhos.

19/06/2008

Sentido na Pedra

Viseu, manhã de 19 de Junho de 2008



Para os senhores
João Paulo Cruz,
que gosta de palavras,
e Diogo Vaz Pinto,
que também.




Daqui assisto a uma prova escrita: os arabescos da chuva, caligrafia que escreve a impossibilidade de Deus.

Salvar-nos-emos pelo esquecimento, não pelo contrário dele.

Estou sentado numa pedra e viajo sem restrições nem passaporte.

Vejo, nitidamente vejo, barcos azuis à flor muito branca do mar verde – na parede do Banco de Portugal, ao pé da que um agente de polícia segura publicamente um cigarro de mentol e um boneco da disneylândia saído nos hambúrgueres.

Sinto, obscuramente sinto, a cadeira óssea petrificada onde as vértebras desaguam como legos dolorosos, onde me obscuramente sento.

Já não quero dormir dentro.

Este aranhiço no chão: delicado tecelão de agulhas ambulatórias, central de mínimos nervos, múltiplo seguidor da ânsia da vida, no chão.

Um folheto de hipermercado levado trazido pelo vento, volante página do outono artificial das grandes superfícies: acetinada promoção do acém, da língua de vaca lambendo já orvalho nenhum, do camarão pré-cozido não pré-histórico já, da costeleta do cachaço como solta tecla do acordeão de sangue.

Uma manhã rasgada a sol de muito cedo é quanto basta para que a infância, como quem diz adeus de dentro do comboio, me acene de longe: bonita e violada pelos anos, não pela luz.

Senta-te comigo nesta pedra, anda, senta-te, usa comigo calígrafos olhos: escreve chuva, lê porém sol.

Por seres mulher, podes olhar os homens como eu olho as mulheres: furtivas carnívoras formosuras muito dadas a negócios, dentistas, almocreves, bufarinheiros, onzeneiros, ambulantes de salsaparrilha e capilé, mulheres das rendas, fitas, chitas, meninas e bombazinas, escarlates ginjas como maduros corações de miniatura, vendedores de gelo para a sede polar deste trópico de nós dois, na pedra sentados, vendo.

Sim: como vós, persisto.

Se me não persigno nem genuflicto, não é por defeito de respeito nem demasia de descortesia, mas por estar, só, osseamente sentado na pedra, só como uma estátua que o tempo reverdece antes de escuranoitecer.

Aranhiço, aranhiço.

Do fumo de pensar, as volutas arabescam chuvas antigas: as primaciais, as primevas, que bolhavam no pátio de cimento o primeiro cinema ante a última criança que fui.

Que fui, como vós, criança guardada em casa, no pátio chovendo – aí me iniciei na visão, a língua não me chegara ainda em todo o seu poder anihilador.

Estou sentado sozinho numa pedra, falo contigo a vós, acena-me de longe a infância pluvial ao sol.

Em fria almácega (não alma cega, isso não), atira a rã a sua natação, como se nadaram os compassos no papel verde da parada água, tão fria, da almácega.

Negra revoada de lunares morcegos assombra o interlúdio das faias nocturnas.

Pirilampos, lampadinhas de pisca-fogo nos grandes agostos anoitecidos, fulguram estivais gambiarras de natal, ante o menino que vê, preparado para a óssea futura pedra onde agora eu.

Depois, fui tomado pela primacial poesia trovadoresca (Martim Codax etc.), a inocência primeva gorou-se-me como água por um ralo de pensão de águas correntes, conheci um homem sentado numa sala recebendo vozes partidas, partidas de partir para longe e para sempre, de partir de quebrar.

Aprendi-me a ler, ficaram-me esquecidos os pés no chão de aranhiços, esquecidas as costas súbditas do arrepio da maravilha: e o coração se me volveu uma ilha.

Entretanto, passam anos, flúi o dia – e uma só noite assenta sua mesma cosmogonia.

Vem o vento, o vento vai – da pedra, quietamente o toco, como às faces amadas tocam os que ficam no amor de amá-las à face: faces símiles, rútilas, invencíveis, imperecíveis.

Se eu quisesse, chamava, daqui, cristal ao vidro.
Este é o poder.

Aí, daqui, pode a pessoa possível ser um pouco Deus, de manhã, ao sol como à chuva, acenando-lhe o longe uma criança, uma rã, uma copla, um barco azul
de Portugal.

18/06/2008

Termina o Anjo, recomeça a Portugália


Sob a égide do Grupo Editorial e Livreiro da Fundação Agostinho Fernandes, renasce publicamente em Lisboa, no próximo dia 24 de Junho (às 18h30, na Livraria Sá da Costa em Lisboa, na Rua Garrett 100-102, ao Chiado ), a Portugália Editora.
À Portugália, surgem associados dois outros nomes de importância maior no panorama da edição em língua portuguesa: Livraria Sá da Costa Editora e Buchholz.
Deram-me estes senhores a honra de integrar o catálogo por eles chancelado.
Entre 24 de Novembro de 2006 e 8 de Abril de 2008, escrevi uma coisa chamada Terminação do Anjo. É um romance, talvez.

17/06/2008

Esbjörn Svensson


Esbjörn Svensson morreu no sábado, num acidente de mergulho.
Tinha 44 anos.
Fica-nos a música, a maravilhosa música dele.

Deixo-vos aqui um exemplo:

http://www.youtube.com/watch?v=kxwlkjZb6Iw&feature=related

Um dia Teremos Tido


Texto: Viseu, manhã e tarde de 17 de Abril de 2008
Foto: Coimbra, 7 de Julho de 2007


******


I
Viseu, manhã


Um dia teremos tido este dia
outra manhã se nos volverá noite
cada hoje é um volitivo rio involuntário.

A minha tarefa é reconhecer o mundo conhecido
redescobrir o mundo descoberto.

É cada dia um mundo
e o mundo é a mais importante descoberta
de cada dia desconhecido.

Isto te digo com o coração nas mãos
se não em ambas ao menos na direita
a que escreve para perder olhando o dia na cara.

Não importa que chova e pelas ruas passem
as pessoas abatidamente
como cães magramente
pensando na vida do dia-a-dia.

Dia a dia perdemos ganhamos vencemos dias.
Nem sempre nos derrota a noite
ela nos permite afinal a imitação da morte
como a manhã nos afinal admite nascimento novo
para o dia.

É belo respirar numa montanha que suba o dia
todos os dias para sempre
e quando dentro de nós dizemos
para sempre
é
nunca mais
o que dizer queríamos
mas não o sabíamos.

A morte precisa dos telefones para existir
sem eles ela não existiria
e só vida sentiríamos que havia:

a vida da cabeça dos castanheiros ao pente do vento
a vida corredora das raposas
a vida climatizada do dentro dos carros
a vida das nossas mulheres abrindo a nossa
a vida dos animais pelas ruas vivas
a vida daquela rapariga bebendo chá pensando na vida.

Um dia
não hoje
teremos tido este dia
e alguma íntima ínfima voz do futuro hoje
não é já hoje
como soía.

II
Viseu, tarde

No olhar que assina o rosto deste homem
revejo as películas dos olhos dos homens
da minha infância
os vários únicos homens
a que chamar Pai ou Jorge ou senhor Sacramento
ou senhor Nunes ou senhor Artur ou tio Arménio.
Homem multiplicado e indivisível da minha idade adulta
homem da minha estulta cidade
deixa-me que te diga
senhor
quão mais pobre sem vós eu me seria
homem eu também afinal e
conforme os dias
tratado até por senhor
em cafés e mercearias.

III

Tenho dentro de mim as vossas palavras
levo-vo-las por todo o lado
tenho um mapa da cidade
que olho de cima como se a sobrevoasse
as vossas palavras estão inscritas em mim
tu António Arcanjo Dias
isso é ser amigo
lembras-te?
tu Fernando Jorge Pereira Fernandes
vim aqui ver-te
sabes?
senhor Professor Elias Rodrigues Faro
o senhor disse
trago-te isto tudo
e trouxe
tu Rui de Moura Belo
escreveste
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta

e eu li e percebi e agora sei
por estas ruas vivas com nomes de mortos
agora sei quanto viver é o melhor remédio
contra a morte e contra a própria vida
devo ter envelhecido porque sei algumas coisas
sei por exemplo chamar com pão as pombas
sei escrever inutilmente versos que como veias palpitam
sei fazer utilmente telefonemas inesperados com as vossas palavras
sei uma data de datas como se usasse jóias
sei olhar os cães na cara e eles percebem
sei parar perante uma rosa quando chove
sei onde são as praias do Baleal e da Consolação
(frequentada esta última por Ruy Belo a partir de 1972)
sei ir sozinho aos correios devolver-vos estas palavras.

Este poema é como estar nos correios.

IV

Devo ser agora um gajo de Viseu
fui à porta do café fumar um cigarro e
perguntou-me um casal uma direcção
que eu sabia perfeitamente qual era
ao contrário da da minha vida
e que perfeitamente lhes indiquei
com a cortesia que era a de meu Pai
a rua e as que a ela transversam
o Pavia perto e as árvores
e que cafés servem o mais barato e melhor copinho
e que livros talvez folhear na livraria ao pé
e que pombas alimentar com que trinca de arroz
a 57 cêntimos o saco na mercearia mais perto
e é mesmo ali
mesmo aqui
não há que enganar.

V

Algum anjo apedrejou hoje os cântaros de Deus
chove que Ele a dá
estou há quase uma hora para sair daqui
e não devo
posso mas não devo
sair daqui.

Aproveito para amontoar versos
tenho um lápis amarelo novo
o de ontem gastei-o nos versos de ontem
gostaria de ter uma lareira um bule de chá
os volumes de L’Illustration a partir de 1845
um pessegueiro no pátio
uma atitude definitiva
uma caderneta de numerário
um vaso de vidro cheio de morangos idênticos
à boca de uma criança sumarenta.

Algum anjo
o sacana de algum anjo
me apedrejou.

VI

Nos sonhos alguns vivos existem mortos
nos sonhos alguns mortos revivem mexem-se.
Nos sonhos as luzes não estão todas ligadas
a penumbra é a pátria dos sonhos claramente.

VII

É engraçado como a chuva anoitece o olhar.
A catedral já de si tão nocturna anoitece até a manhã.
Vamos buscar os filhos à escola fazemos a ronda da padaria
do sapateiro da fotocopiadora do quiosque
e chove chove chove chove até ser noite
até ser amanhã.
A minha mulher e a minha gata
não simpatizam com a chuva
eu simpatizo
eu até contemporizo.
À Porta de Viriato
espero e atendo.
São seis e cinco da tarde chove
atendo e espero.
A vida chove lá fora.
Tenho tempo.
Estou aqui sentado a anoitecer.
Tenho tempo.
Sou como vós continental
como vós preparo ilhas pensadas enquanto chove.
Os quiosques recobriram de plástico os jornais
vão vender menos.
Passa na tv um filme de pistolas nortamericanas.
Dois velhos olham para aquela merda muito entretidos.
Eu olho a chuva no mundo que foi de Viriato.

A este café vêm muitas putas da zona.
É agradável estar aqui quando chove.
Parece-se muito com as quintas-feiras na biblioteca
municipal de Coimbra
a de antigamente junto aos socorros mútuos dos artistas
noutra vida que vivi
ou me viveu
antes de ti.
Acho graça à graciosa alma
ao preço dela tenho apreço.
Estou aqui sentado a lembrar-me das minhas pessoas.
Estou aqui sentado dentro da língua.
O acontecimento mundial é a chuva.
Aquele casal a quem indiquei no IV a rua tal
deve estar molhado.
Pareceram-me uma boa relação
pareciam-me felizes um com o outro.
Gostei de indicar-lhes a rua em língua portuguesa.

Já estava a chover na altura
foi por volta das quatro da tarde.
Claro que este céu inox nos faz como
viver dentro de uma caixa de sapatos
dessas antigas todas iguais
todas iguais umas dentro traziam sapatos novos
para os pés que já então envelheciam
os caminhos as veredas as ruas
as cidades de cartão.
Um bule de chá uma biblioteca de livros de carneira
as vossas palavras
tudo o que sempre quis
quero sempre
e sempre hei-de querer
quando chove
e quando não chove.

VIII

Vamos estar juntos durante o filme.
Depois vamos comer qualquer coisa na noite.
Já não chove sabia-me bem uma sopa quente.
Levo amigo um livro mas podemos conversar.
Lá fora os homens mais pobres olham pela montra
vêem-nos comer perante altares de papel.
Há frango há feijão-frade há bacalhau há dourada.
O patrão tem um pé imortalizado em gesso
até as frases lhe coxeiam na boca.
Comer uma azeitona é como saborear uma oliveira
reparaste?
Sim tenho tido os meus dias.
Agora saio menos deixo-me estar
já conheço muito mundo
sei as ruas na ponta da língua.

15/06/2008

Surf de Greta Garbo – um poema ginocultural e peras

L'Inconnue du Seine


Viseu, manhã de domingo, 15 de Junho de 2008






Muitas das nossas mulheres foram já homens
agora nem tanto.

Pauline Parker e a mãe ajudaram Juliet Hulme
a volver-se Anne Perry.
E Perry ajudou Anne
a volver-se mórmon.

A Desconhecida do Sena ajudou milhares de raparigas
a ser mortas-vivas, dizem que até a Garbo foi na onda.

Muitas das nossas mulheres também são santas dos últimos dias
os nossos dias
naturalmente os nossos
os dias delas são sempre mais primeiros.

Muitas das nossas mulheres trabalham em Wall Street
que é a eira onde se desfolha o milho das guerras todas.
Algumas trabalham de manhã em Wall Street
à tarde fazem uma perninha na CNN
e à noite abrem as duas depois do lançamento de mais um
livro de versos pré-comprado por uma câmara municipal
das nossas.

Eu gosto muito de mulheres
sobretudo das dos outros
digo os outros
quero dizer os que “fazem” versos
os que adoram pessoa adoram sophia
adoram torga adoram eugénio
adoram tudo
o que lhes não passe pela cabeça
pelo coração muito menos.

Uma das nossas mulheres é vereadora do lixo
dos bairros sociociganos e das creches.
Duas das nossas mulheres trabalham no témarché
para serem modelos continentais com o pingo doce
do costume.
Três das nossas mulheres aspiram ao futuro enquanto aspiram
as fezes escondidas dos gatos pela casa quase toda.
Quatro das nossas mulheres já leram Anne Perry mas não
sabem daquilo da Juliet.
Uma, duas, três, quatro.

A Desconhecida do Sena é que não esteve com cenas
e desconheceu-se logo que pôde.
A cultura é uma coisa muito bonita sobretudo
para a termos fechada em casa junto com
as nossas mulheres as fezes das nossas mulheres
os nossos gatos as fezes dos nossos gatos.
Pouco importa que sejamos nós
as fezes das nossas mulheres.

Até porque muitos de nós já fomos mulheres
tanto que nem agora.
As peras entram aqui.

De Q. M.



Viseu, manhã de domingo, 15 de Junho de 2008

Foto: © Weegee


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De qualquer modo também não me vou atravessar à frente
do comboio. Não pode ser de um modo qualquer.
A disenteria não justifica tudo, por mais ulcerada que me
ande a mucosa versalhista. Nem a disgenesia: há quem se dê
a versos, quem só na versalhes se vê.
Versa-lhes assim, dê por onde dê.

Há tanta gente igualzinha a mim, clones de circo
mas do lado certo sempre do tal comboio, lá dentro
apertadinhos uns contra os outros, todos contra sempre
uns e os outros.

A poesia é como a pessoa: ou é séria
ou é a brincar – em nenhum caso é
de confiança.
– Isto me diz um delicioso cavalheiro judicioso
que desbaratou em fiats centivintessetes
a colecção completa da vampiro até março de 1972
que o pai lhe deixou como viático para o futuro
doméstico do costume.

Não digo isto a brincar,
mas nem por isto me sai séria
a poesia.

De qualquer modo.

14/06/2008

Uma Só Noite



Escrita ontem, 13 de Junho de 2008, à tarde, esta é a história nº 80 da rubrica radiofónica 1002 Noites, que preenche a terceira hora (22-23h00) do programa Anoitecer ao Tom Dela (todas as noites de 2ª a 6ª feiras, entre as 20 e as 24 horas, em 91.2FM ou
www.emissoradasbeiras.radios.pt).

A fotografia é © de Sandra Bernardo e foi obtida no Caramulo a 21 de Abril de 2008.



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Uma Só Noite


1
Em noites de calor, quando junho ferve de febre, fecho-me em casa e sento-me rodeado de pessoas inexistentes (ou pelo menos invisíveis) numa sala de chão de madeira fracamente iluminada por um candeeiro público que pontifica no largo deserto sobre o qual a janela deixa cair um olhar de vidro há mais de meio século. As palavras dessas pessoas luzem-me no rosto interior da cabeça como velas agravadoras da penumbra da sala onde há mais de meio século me refugio para suportar o calor e a inequívoca desesperança que sempre sucede à boa-fé da mocidade.

2
Uma das pessoas é uma senhora de Dartmoor, sítio aonde nunca fui mas que já cavalguei em sonhos. Com fleuma e vagar, ela repete-me o meu casaco verde-escuro, o meu cavalo negro, o meu lenço violeta emergindo da lapela como uma educada língua doente, as minhas calças de caqui cinzentas, as minhas botas subidas aos joelhos como uma humidade ou uma tremura, o meu chapéu grená e azul. Os dentes dela tinem como colherinhas de prata num pires de chá. No fim de falar, não sei porquê, chora sempre. Vale-me que o faz brandamente.

3
Na indecisão da sala mal denunciada pelo candeeiro do largo, vive também um conde de outro século, um século talvez futuro, a julgar pela insistência monomaníaca com que me serve sentenças relativas todas ao Amor. Não o vejo, como não vejo ninguém, mas não é difícil adivinhar-lhe a jaqueta negra e lustrosa como um guarda-chuva, os dedos amarelos pela consumpção do tempo e do tabaco, os olhos aguados pela madrepérola dos mortos. Fala-me de criadas francesas peritas em amores rápidos a cujos janelos de mansarda acorriam rouxinóis gráficos e flocos de neve duros como pedras. Este chora antes de falar, brandamente também.

4
Nem sempre a ouço, mas acontece-me sentir a voz de uma criança de sexo indeterminável que só posso comparar a um anjo extraviado. Senta-se no chão sobre uma profusão de ramalhetes de cravetas que seriam amarelas se houvesse mais luz. A criança diz rimas de metro alexandrino que me parece provirem dos jogos com que na infância os poetas aprendem a ser tristes. Outras vezes, diz coisas do céu com a segurança de quem nunca povoou a terra. Ouvindo-a, sou eu quem chora – e nem sempre com brandura.

5
Os animais vivos da minha casa evitam participar do gélido cenáculo de tais noites de fornalha. Os que podem, passam a madrugada na rua, regressando de manhã purificados pelo hálito a laranjeiras das imediações do rio. Os que ficam, ocultam-se dentro de si mesmos como palavras pensadas por mães extintas antes de poderem dizê-las. Por toda a casa, antes de me fechar na sala com as vozes, deixo barros com água, a cuja flor os animais remanescentes confirmam a lucidez da cegueira.

6
No único cadeirão da sala onde agonizo o calor da noite central de junho, dou as costas à janela que há tantos anos olha a pedra do chão do largo. Ouço o que inexiste (ou que pelo menos não posso dar a ver) – e nem a euforia do desespero me é dada, pois que há muito dobrei o cabo de esperar o que seja. Fecho os olhos para ver as vozes. Gosto do meu cavalo través as áleas de ulmeiros de Dartmoor, toco-lhe o rosto como as crianças às vezes fazem aos moribundos. Também penso em criadas francesas, mas mais rapidamente do que, delas, os amores vigiados por rouxinóis de caligrafia.

7
Volto à vida quando chove tão intensamente, que pensar é uma estação que chega sempre depois. Fecho a porta da sala, alimento os animais da casa, digo-lhes que os amo a todos um por um, saio para o largo de pedra, sinto nas costas o olhar da minha janela, afago à passagem o ferro do candeeiro solitário, desço uma rua inclinada como uma dor amorosa e demando as imediações do rio, onde fulguram as laranjeiras e por onde colho ramalhetes de cravetas amarelas. Trabalho até que seja noite juntando pedras, baldeando areias e matando jacintos-de-água. Regresso a casa com o único sinónimo de felicidade que conheço: a fadiga física.

8
Ainda o inverno não acabou, já sofro a antecipação das febres nocturnas de junho, quando se me torna inelutável sagrar-me e sangrar-me cavaleiro improvável de casaco verde-escuro e canelas enegrecidas de botas, a língua violeta como um lenço emergindo-me da boca. Adquiro na farmácia, para toda a primavera, frascos de tónico de carne e pastilhas para dormir como se nunca houvera nascido. Assim passei mais de meio século.

9
Todos os anos me parecem futuros como inversos séculos: e uma única noite os une, como o corredor de uma casa vertebra quartos. O tempo é a minha única vidência: nem o caixeiro da farmácia vejo. Vejo as cravetas amarelas empilhando-se a um canto da sala, esvaecido o amarelo. Ouço a luz escassíssima do candeeiro do largo, ouço o inverno desmoronando-se como neve de pedra, vejo a mansarda da minha cabeça vocal acima de saguões e saguões de calamento.

10
Não era esta a história que queria contar-vos, mas foi a única que a tarde me deu. É verdade que vejo vozes, as palavras mais até do que as vozes, mas o caixeiro da farmácia é Manuel Alves Sério Baptista e existe, também ele, como um candeeiro público – ou como eu, enquanto o próximo meio século não termina e enquanto as laranjeiras purificam o rio e os meus animais e a única noite que junho é.

13/06/2008

Três Imagens do Mundo






Aqui vos deixo três fotografias recentes.
A gata chama-se Juninha porque a encontrei a 1 de Junho de 2008 a morrer de fome e de abandono na Rua Direita, em Viseu. Agora, é mais um elemento cá da casa e está a recuperar muito bem. A foto é de hoje, 13 de Junho.
O cão, não sei como se chama - mas tudo indica tratar-se de um cliente regular do talho da Avenida Dr. António José de Almeida (Viseu, 31 de Maio de 2008).
Finalmente, o sapato perdido na linha ferroviária é imagem captada na Estação do Oriente, Lx., na manhã de 4 de Junho recente.

Interrogar para Saber (e para Querer Saber)

A partir de hoje, nos links aqui do Canil, este sítio do JPC: http://naturalmente.wordpress.com/

Três Crónicas

Crónica Mundial - 6
www.jornaldocentro.pt

PEQUENOS NADAS QUE ME SÃO TUDO

O futuro não é a minha religião. Prefiro-lhe, devota e devotadamente, o tempo presente.
Pela cidade, ao sol como à chuva, exerço cada dia o direito ao dia-a-dia. Levo o corpo que me leva: por ruas tocadas de pombas, janelas, mães solteiras, polícias melancólicos e por furtivos esgares da efemeridade, essa nossa incondicional irmã existencial e solteira também.
Em Viseu, o presente é feito dos tantos pequenos nadas que ao resto do mundo enformam e informam: o taxista que destrava o carro para o empurrar sem consumo ao lugar da frente; o empregado do café que trata os fregueses por senhor seguido do nome do senhor; a mulher estratégica que fornece uma fotocópia com o recado-esmola da fome dos filhos; as rotundas também estratégicas que fazem ao trânsito o que o coração faz aos glóbulos e aos sonetos; o cemitério memo-marmorizando nomes agora improváveis a partir de duplas datas comprovadas; o tempo tornando-se granito como uma condenação; e a memória colectiva volvendo-se urdume de tanto esquecimento pessoal.
Escrevo-vos a 10 de Junho, feriado nacional. Faz sol, vai larga e boa a manhã muito alta. O senhor da mesa ao lado fervilha no copo um quartilho de água mineral. A minha mulher lê o Diário de Notícias com a distraída atenção comum aos anjos domésticos. Água mineral e Diário de Notícias enformam e informam o presente. Afio o lápis e olho para o senhor da jaqueta de terilene que passeia a pochette e os sapatos de lona pela rua vazia.
Não, o futuro não é a minha religião. A minha religião é o quotidiano. Em Viseu como no resto do mundo, os meus altares são acessíveis, comezinhos, transitáveis, banais. Passa a senhora com o carrinho-de-bebé-com-bebé, passa a viatura da polícia municipal, passa um cão amarelo de olhos líquidos como ampolas de chuva, passa a manhã.
E eu, caladamente, tomo nota e rezo para dentro o breve breviário da manhã que acaba sem garantia de tarde.
******
Rosário Breve - 56 e Contra os Canhões - 11
VIVA O CAMIONISTA PORTUGUÊS, VIVA!

Os camionistas portugueses não confundem o Euro com o euro. Valentes gajos. De facto, uma coisa é o pão. Outra, o circo. A antítese, poeticamente fixada pelo latino Juvenal há tantos séculos, continua viva e segue actual.
Finalmente, alguém em Portugal quer dizer – e diz – um rotundo Não à sanha anti-humanitária do Senhor Simplex. Gosto de ver os camionistas nos telejornais. São gente como todos deveríamos ser: gente que firma e afirma, pela negação, o recado positivo do direito à indignação. A pretexto de dois prédios caídos na América em Setembro de 2001, o mundo volveu-se, quiçá definitivamente, uma fogueira de va(n)idades. O combustível fóssil, mais difícil do que nunca, engendra colossais fortunas particulares e descomunais misérias gerais. Os alimentos básicos, movidos a gasóleo, competem em escassez distributiva com a água, o oxigénio e, até, com a própria luz solar. Entretanto, por aqui, o Valentim “distribui” o Metro do Porto e o Senhor Simplex “fuma” SG-TGV.
Em Lisboa ou em aviões fretados com cinzeiro, o Senhor Simplex quer lá saber de camionistas e coisas assim. Duzentas mil pessoas na Avenida da ex-Liberdade não o movem nem o comovem. Népia. Ele é um “engenheiro”.
Eu e os camionistas portugueses achamo-lo, porém, um desalmado. Porquê? Porque não se pode (melhor: poder, pode, mas não se deve) governar pessoas contras as pessoas. Um mandato democrático não tem de ser uma mina antipessoal. Para mais, nem os camionistas nem eu pedimos ao Senhor Simplex que seja socialista. Exigimos-lhe, tão-só, que seja social. Até porque dois prédios na América não valem, sequer, uma maternidade fechada aqui. Nem dez minutos de têgêvê. Nem um quilo de arroz. Nem meio litro de gasóleo.
Nem um camionista português.
******
Bairro Nosso - 4
GARANTIDAMENTE

Vivo num sítio tão parecido com o vosso, mas tanto, que até se chama Portugal.
Umas vezes, dá-lhe o sol. Outras, chove-lhe cópia de granizo. Quase sempre há bola, nem sempre pão. Das creches rarefeitas, filindianam criancinhas amestradas como gansos. Os doutores Parkinson e Alzheimer tremem em esquecidos sanatórios senis. O senhor primeiro-ministro faz “jogging” à Hora-TV entre duas passas de cigarro. As câmaras municipais carregam o contador da água com a lixívia da roubalheira. O filho do Tony Carreira também faz carreira. E ninguém lê Manuel da Fonseca, nem Nuno Bragança, nem Carlos de Oliveira, nem Soeiro Pereira Gomes, nem António Osório, nem Raul Brandão, nem Wenceslau de Moraes, nem Cesário Verde. Ninguém.
Vivo aqui e daqui não saio. Mas isto às vezes dói. A pátria, mais madrástria do que mátria, pode ser um sítio que dói. Tenho conhecido tanta tão boa gente que este país sacro-miserabilista atira ao lixo. Tanta. E tão boa.
Cronico-vos estas lamentações a 10 de Junho – talvez por isso tão fadista me resulte a prosa. Mas é aqui que vivo. Aqui nasci. Daqui sou. Aqui morrerei.
Na Bairrada como no resto/do/país/do/mundo, temos todos de parecer-nos, ao menos uma vez na vida, com o nosso espelho. Sim, com o nosso espelho: superfície de luz em que a esquerda e a direita se canhotam pelo avesso. E em que, por exemplo, cada camionista em luta é meu irmão, entre duas passas de proibido cigarro.
É Junho, o sol voltará. A chuva também voltará. Esqueceremos tudo. A vida passar-nos-á ao lado enquanto assim quisermos. Estes ministros também passarão. Também os esqueceremos. O doutor Alzheimer garante-nos isso. Enquanto confundirmos o Euro com o euro, o doutor Alzheimer está em condições de nos garantir isso.
O Senhor Simplex também. Garantidamente.

12/06/2008

Para que Nada Conste

Viseu, manhã de 12 de Junho de 2008


Os teus olhos são as mais duradouras flores da chuva.
Digo isto sem ser por erotismo.
Digo isto porque ainda não te cancelei o meu coração.
Estou a falar contigo, é quinta-feira, um ano qualquer.

Sentei-me, outro dia, numa pedra da cidade.
Testemunhei o tempo e a mortandade da beleza.
Vi passar uma senhora com a memória à coleira.
Topei perfeitamente as palavras pensadas dentro das pessoas.

Exerço o meu ministério vivente contra o futuro.
Um dia teremos sido – e nada constará de nós.
Cavalheiros vestidos de preto sentinelam o rio.
Um comboio é uma atitude de ferro.

A tua pele muito branca vai ser o fato de noiva
para outro homem, quando eu mais não puder
amar, nem chamar duradouras flores pluviais
aos teus olhos que pensam como duas bocas azuis.

Traz-me um pouco de água, lava-me as mãos
que sujei na guerra, nos bares, em outras mulheres.
Desenha-me um anjo a carvão na neve.
Deixa-me ir ver o futebol – ou então as árvores.

Estou ainda muito aonde não fui.
Invoco os meus mínimos deuses de terracota.
Crianças bailam num pátio de cavalos.
O carteiro traz-nos palavras numerais, frias.

Se pudesse, nunca mais te morreria.
Nunca teria falado com ninguém para que ouviras.
Dou-te estes campos de arroz, estas cegonhas:
sou o teu homem, sou, como diz aquele livro,

um saco de vísceras apertado em cima por um olhar.

Fui há dias a Lisboa, trouxe de lá as mãos queimadas.
Vi lá muitos livros, alguns eram pessoas.
Entrei num café, conversei sobre bacalhau e economia
com o senhor do balcão, que era Martins

como tantos outros.
Depois, anoiteceu comigo em baixo,
vi passar Santarém, Albergaria dos Doze,
Adémia, Pampilhosa, era estranho estar tão vivo.

Sentei-me num sítio fresco, trouxeram-me sopa quente.
Partilhei o pão de milho com quatro pombas.
Devo ter sido vagamente feliz na contramão: a luz
era o mais buliçoso cristal da noite.

Agora faço isto amanhã.
És o melhor dos meus ontens.
E por puro amor púrpuro
a azul te digo isto, branca.

09/06/2008

PRECISO TANTO DE FALAR CONTIGO MAS HOJE JÁ NÃO

Viseu, tarde de 8 e manhã de 9 de Junho de 2008



Tenho já em vida pena de morrer um dia por estas árvores.
Seda vem delas em fresco ar ao pano da pele.
Tenho já ouvido o piano terminal no silêncio comum.
Uma mulher parada num quarto esperando comboios para o norte.
As coisas existem fortemente. O corpo tem delíquios.

Levo-me num dedo à névoa que envolve a garrafa:
o frio embacia a cerveja como o vapor do banho o espelho.
Somos todos no café peões de tabuleiro que ninguém joga.
Tenho muita pena das pessoas hirtas ao sol,
muita pena da sombra das árvores atirada ao chão.

Sou o que veio para te não perdoar tanto amor.
No ventre da mulher dele construiu meu Pai isto:
esta vida, esta vinda, esta vianda.
As sinapses todas luzindo como gambiarras de natal.
E a infância lá em baixo deitada no escuro como um cão.

Preciso tanto de falar contigo mas hoje já não.
Quem me dera ser capaz de levantar do chão os rios.
Os rios? Isso que anda deitado como os mortos.
Toda a existência mínima é uma grande guerra.
E no café usamos ideias como capacetes.

Fechados na manhã como caixas de bacalhau,
urdimos a vilegiatura de apodrecidas romãs.
O monossilábico sapo coaxa sua nota triste,
as mães predominam pela calada da manhã,
os homens envergam o jornal desportivo como outrora lanças.

Espera-me tu ainda um pouco, eu só tenho este poema
para acabar-me. Sou o que veio para te nascer –
e não penso concluir esta casa, esta refeição
de migalhas.
Sei o horário dos comboios para o norte,

nenhum chegará à certa hora de por estas árvores
me morrer. Somos os cordeiros de Deus-Lobo.
Valer não é balir: nem eu poderia ir
fazer filhos a mulheres que escarlatam de sangue
as unhas de verniz, também te lo digo.

Letra a letra persigo a luz, esse óculo de som
vidrando de miríades o estilhaçado pranto.
Fecha-me num quarto, deixa-me uma posta de bacalhau,
um vaso de água, uma carta por abrir,
uma fotografia da minha Irmã perto do nascimento.

Se eu me deitar, absolve-me de ter-me levantado
um dia sozinho, clínico ambulador entre nespereiras.
Eu fui já um menino feliz quando mesmo chovia
em bairros atarantados pela mais cigana contrafacção:
estar vivo e sabê-lo.

Agora adentro o nosso mais íntimo rumor, digo:
agora conheço de cor a feira impopular do coração.
Sou agora capaz de me meter no comboio,
de trocar pura sapiência com o rapaz do vagão-bar,
esperar que o corredor de árvores amanheça de cavalos.

E de tal sorte, que muita pena me detém,
da morte, a vida e o norte.

08/06/2008

A minha Irmã compôs este fado tendo ido a Lisboa ver a Filha

Ai esta luz de Lisboa
Que me inunda e me desnuda
E estranhamente me acalma
Luz d'aguarela e de sal
Onde me tropeça a alma.

Ai esta luz de Lisboa
Que me inunda
E me desnuda
Num longo abraço lilás
Luz que vira poesia
Ao som que o vento lhe traz.

06/06/2008

MISTER CHANGUITO KNOWS WHAT I MEAN

MISTER CHANGUITO KNOWS WHAT I MEAN
ou
C’EST-À-DIRE AVEC CEPENDANT
ou
SEIS AZULEJOS PARA PAINEL DE METROPOLITANO
ou
O SONASOL NÃO FOI ’INDA DEVIDAMENTE PRESTIGIADO



Viseu, Cafés Paris, Avenida e O Bárbaro , manhã de 6 de Junho de 2008


1

Escrever versos é um bocado como lavar a cabeça com sonasol.
Porquê, não sei.
Sei, tão-só, que há muito me deixei de realidade(s), em prol de uma vida irrelevante ou, no mínimo, em baixo-relevo.
O mais que faço de, por assim dizer, importante é indicar a motoristas de fora direcções de ruas numa cidade que não conheço, esta.
Faço precisamente o mesmo da/com a poesia.
Por causa do sonasol, as minhas primeiras cãs são de um branco-esmalte de banheira, tendo-se-me porém amarelecido o sorriso daquele amarelo-ferrugem de pia lavatória submissa a perpétuo pingo de torneira vitalícia.
A Sé de Viseu? Perfeitamente. Faça como o País: o senhor vá descendo esta rua. Ao cabo dela, corte à esquerda ou à direita – é igual e dá no mesmo, posto ser sempre a descer, não sei se ’tá a ver.

2

Gosto de mesavizinhar, no café, cavalheiros apagados como estearina molhada e como eu. Na solidão nocturna das manhãs, gosto de tomar perto deles a minha água mineral à base de engaço. Com o indicador da mão que não escreve, depilo por dentro as fossas nasais, observado de esguelha por eles, esses cavalheiros tão morais que bebem galões com boquinha-cu-de-galinha.
Eles jogam muito no totoloto: têm esperança, palavra hebraica que significa “se-me-saísse-nunca-mais-fazia-nada-nem-na-nem-da-vida-como-aliás-nunca-fiz”.
Eu gosto de vê-los jogar. Eu gosto de vê-los jogar fora – como faço eu de mim sempre, mas sempre perto deles, à excepção da cena do galão.

3

A vida é rápida.
A existência é que é lenta, sobretudo a partir do momento em que a mulher nos sai de casa para comprar cigarros e até hoje.
Devo afiançar a Mister Changuito e a V. que nunca tal me aconteceu: jamais fui utente de mulher que fumasse, muito menos em aviões fretados a SG-Charter. Também não sou home’ de confundir imobiliárias com imobilismo, nem alimárias com automobilismo: cuido das minhas palavras como uma velha de mansarda rega a celibatário mijo as respectivas sardinheiras ou como um bancário obtuso e divorciado pendura à janela a atoalhada bandeira nacional em dia de procissão de São Cristiano Ronaldo.
A vida só é lenta (e a existência, quieta) quando, desfraldado e transido de fria beleza como um glaciar portátil, leio o meu John Le Carré, o teu Thomas Bernhard e o derradeiro bilhete dela, que alegou ir a cigarros e cavou com um bancário divorciado e obtuso e nacional como a bandeira.

4

Claro que, cedo ou temporão, ainda posso vir um dia a ser humilhado em lãgerí quando, distraidamente, coçar em público uma anca. Quem diz “anca”, diria, à la Eugénio de Andrade, “flanco”.
Uma pessoa coça-se, é natural. Tidos em conta os tempos que (não, de modo algum) correm, também o cólã é natural. O galão é que não, de modo algum.

5

Em casa
as gatas povoam o intervalo dos móveis
que não tenho.
Roubo
nos cafés
pacotes de açúcar que
em casa
dissolvo no leite delas
para que saibam elas
quão diabética pode ser
a amarga vida.

Em casa
tenho uma máquina de triturar retratos
outra de resolver problemas de metrificação
outra de decifrar críticas teatrais
outra de medir a tensão
outra de avaliar o grau de pureza dos fosfatos do Chile
outra que cardiogramatiza o urro lácteo dos cetáceos.

Em casa
tenho eu muito respeitinho por cetáceos
que
como os adolescentes
passam a breve rápida vida da adolescência
com a cabeça cheia de espermacete.

Em casa
serei feliz sábado à tarde
sentado no chão da sala por ausência
de sofá e de talento
e de mulher não tabágica:
pode a vida ser soez e assaz
trágica
mas a minha não
que eu até já li Somerset Maugham
e até Fernando Namora.

Em casa
dos outros
é raro mas acontece
vagambulo entre alheias máquinas
por exemplo

em casa de um poeta conceptista
dou com a máquina de ceder a argumentos contrários
em casa de um jornalista do Correio da Manhã
dou com a máquina de lavar sangue do chão
em casa da cantora Ana Malhoa
dou com a máquina de fazer retratos do Che Guevara
em casa de um amor que tive
dou com a máquina de agrafar olvidos
em casa da minha extinta avó materna
dou com a máquina de cremar leite
em casa de um contador da luz
dou com a máquina de desvolatizar andorinhas
em casa do primeiro dos ministros
dou com uma máquina de fazer canhotos de rifas de quermesse
em casa de um ajuntador de ranchos
dou com a minha Mãe aos dezasseis anos
em casa de um administrador da TAP
dou com um administrador da RTP
cujas mulheres saíram a comprar cigarros e até hoje
em casa de uma professora de Português
dou com a máquina de lacrar livros
em casa de uma professora de Ornitologia
dou com a máquina de livrar bicos-de-lacre
em casa de um onicófago tristíssimo
dou com a máquina de desunhar alegrias
em minha casa
dou por mim maquinando manguitos a fantasmas
que tomam galões e atitudes e diabéticas usuras
do meu anoitecer
cada manhã
muito cedo
temporão
e
serôdio.

6

Fora de brincadeiras, haveria que reformular tudo isto:

a mecânica confessional da respiração;
a esterilização ainda não obrigatória do autarca (qualquer autarca);
o cotejo tradutor (de Rilke) versos Paulo Quintela versus Vasco Guta Moura;
a questão Sagres/Super Bock (com fundo trinadinho coimbrão Topázio/Ónix);
o desejável congresso plurilingue em torno do Clube de Futebol Os Belenenses (com retrato em PowerPoint, ou menos, do Américo Thomaz em sapatilhas da Marinha Portuguesa);
a questão da Água e dos Que Isso É que Nunca;
esta comichão que sinto nos arredores do coração à base de engaço e de nomes de mulheres;
os fados únicos de António dos Santos de Alfama;
o olhar da corça em iluminadura materno-juvenil aos dezasseis anos;
a noite (nunca uma qualquer noite) no Bar d’A Barraca, ao Largo de Santos, em Lisboa, tão perto do rio com nome de cão;
a ânsia odorífera-neurológica do mar;
os bons-dias dados e os bons-dias recebidos numa fresta da manhã;
o existencialismo sans-dieu-ni-sartre dos pardais portugueses;
a diluição geriátrica dos bancos de jardim;
a mafalda veiga e a ana malhoa juntas com luís represas rondando perto;
as idas a Salamanca em demanda de fugir daqui-disto;
o desassossego aritmético da ideia de incontáveis mortos numerados;
as gavetas de ferro com clips de plástico dentro;
o meu amigo João circumnavegando o mundo com uma simples pressão de dedo da mão que não escreve;
o Dalai Lama e o União de Lamas;
o meu amigo Rui Correia aos olhos de jovens de treze, dezasseis anos;
a ignorância em geral fungando seus particulares bolores lusitanos;
os lápis nos chineses a dez cêntimos/unidade (uma mina);
os telemóveis pipilando pássaros-sms enganados no escuro por causa do alaranjamento das autostradas;
o senhor maneluísgoucha vestido de branco numa antemão de couratos e administradores da TAP e viúvas comovidas;
as rulotes de bifanas pontuando a néon o torrão-de-alicante de toda a lata de cerveja;
o dâne-bráun moimenta-de-newark-da-beira piscando o olhinho no telejornalinho;
a moimenta-da-beira-e-a-chaga-do-ombro-de-Cristo-a-ombros-com-a-cristandade;
a voluta incensa e insensata do lírio, do gladíolo, do oxiúro e da serra-do-montemuro;
o Ser ou Não Ser, de Maria do Céu Guerra;
a minha sobrinha-filha-irmã-Mariana Abrunheiro Lima Saraiva;
o tempo do Rio Tejo tornado Mondego e Pavia no meu voluntário exílio;
a circunscrição fiscal e a circuncisão em geral explicadas em diferido por Fátima Lopes (uma das duas) ou por Paulo Teixeira Pinto(r) ou por Paula Moura Beatriz dos Livros Pinheiro Costa;
a delicada franja morfológica que o/apõe cultismo e conceptismo, mas Rimbaud também a Verlaine com Ferré rondando perto;
e o sonasol e a nossa vida,
devagar.

Regresso do Senhor Changuito à lide, não a Castelo de Vide

A entrada é fabulosa:

Filha, tu livra-te de imitares a mafalda veiga, que esta família já tem problemas de sobra.

É o Senhor Changuito em http://www.senhorchanguito.blogspot.com/, a partir de hoje também nos links aqui do Canil.

05/06/2008

Mais 4quatro4 cronicanços

1. Rosário Breve - 55
O Ribatejo - www.oribatejo.pt

ABAIXO O CARMO, VIVA A TRINDADE

Prefiro Rainer Maria Rilke, mas a realidade é Pedro Santana Lopes. Se pudesse, falar-vos-ia de Manuel Vásquez Montalbán, mas é que Marcelo Rebelo de Sousa. É sempre tão pouco (tão nada) da segunda parte, não é?
Primo Levi e Cesare Pavese são imbatíveis, mas batem-me mais Manuel Pinho e Lurdes Rodrigues. Não tenho dúvidas de que a vida é menos obtusa com Henry James e com Graham Greene, mas ele há o Miguel Sousa Peixoto e o José Luís Possidónio Tavares Cachapa.
Evidentemente, Corrado Alvaro e Fiodor Dostoievsky, mas no entanto, entretanto, Manuel Serrão e sua gordura oral e João Carlos Espada e seu mau hálito moral. Sinceramente, quem em seu bom juízo e melhor fé duvidaria de que a coisa só lá vai com a santíssima trindade Camões-Eça-Pessoa? A tríplice coisa factual, porém e no entanto e todavia e em toda a conjunção adversativa possível, é Manuela e Moura e Guedes. Ou idem e Ferreira e Leite.
Trindade por trindade, maiêutica por maiêutica, ironia por ironia, condado por conperdido, portucalense por portucalense, mãe e filho, só quero isto: que caia o Carmo ao Scolari. É o que mais lhe desejo, a Bem da Nação. Aqui e agora o confesso. Contra Portugal-Portugal-Portugal (estranho eco do antigo Salazar-Salazar-Salazar), vou no, espero que breve, Euro-2008 arredondilhar por Suíça-República-Checa-Turquia.
Por estes três e por Rainer Maria Rilke.
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2. Contra os Canhões- 10
Região de Leiria - www.regiaodeleiria.pt


AO GÁS DO TEMPO

Em tempos que já lá vão e que a cá não voltarão, morei em Leiria.
Era nos Parceiros. Já então, como agora, levantava-me muito cedo e não sabia, logo desde cedo, que fazer de estar vivo. Então, fazia assim: vivia.
Era meu um citröen tão antigo, que cheguei a pensar candidatá-lo àquelas coisas da Unesco, não sei quê património, não sei quê mundial. Não o (nem me) candidatei.
A verdade é que, naquele tempo, o meu corpo era dez anos mais novo do que este de agora, facto e condição que aproveitei para usá-lo contra várias pessoas, todas do sexo feminino. Todas menos uma (ou um) que ainda hoje não sei se sim ou sopas, se sim ou não, se era ou não era. Bons tempos.
Entretanto, tornei-me este. Melhor: entretanto, tornei-me isto – um imprestável parafuso na engrenagem da vida paulatinamente oxidado pela usura de viver enquanto estou vivo. Tinha de ser.
Ele há, porém, coisas boas. Coisas boas, ainda. E coisas ainda boas. (Falo de cor, porque a memória é a mais prospectiva coisa das coisas.) Passo a enumerar: certas oblíquas frechas de sol través altas plúmbeas nuvens pelo entardecer, fenómeno luminotécnico que me faz suspeitar da improbabilidade de Deus; a euforia absolutamente columbófila das crianças por razão nenhuma (ou por nenhumas razões outras que a de ser criança e a de nunca terem, elas, vivido nos Parceiros); e a feliz melancolia de ler-reler o Eça, o Faulkner, o Cesário e a Yourcenar, como já então lia e aproveitava.
Nos tempos que, se vierem, hão-de vir, conto exercer o meu novo corpo velho a favor de outras tristes euforias. Tenho em casa duas gatas (gatas mesmo, nenhuma dúvida genérico-sexual) para alimentar e ninar, para além da mulher sobre cujos ombros, e não só, recai o quase insustentável peso do meu ser. Tenho isso e Caldwell e Updike e Drieu de la Rochelle e Cossery e Fielding e Nuno Bragança e Lope de la Vega para ler. Tenho estes todos e toda a recordação dos 38 + 2 contos que pagava de renda nos Parceiros. Os dois mil suplementares eram para a botija de gás, em preços que, como a outra vida, já lá vão.
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Crónica Mundial - 5
Jornal do Centro -
www.jornaldocentro.pt

MEMÓRIA DE CARLOS ALHINHO

A morte é sempre trágica, escandalosa sempre.
Também é, a par do nascimento, a mais natural consequência desse intervalo entre uma e outra coisas – a vida.
A morte de Carlos Alhinho reforçou-me estas convicções. Custa muito, resignar-se uma pessoa a tais passamentos e a tais pensamentos. O acidente que o vitimou há poucos dias em Benguela (caiu no poço de um elevador de hotel) teve tanto de aparatoso quanto de infeliz. Uma fracção minha (nossa, mais bem direi) caiu com o Carlos e morreu com o Alhinho.
Ele veio da África, então portuguesa, para estudar em Coimbra e jogar na Académica. Foi o primeiro internacional português a alinhar pelos três “grandes” da bola lusitana: Sporting, Porto e Benfica, por esta ordem. Pendurou as botas depois de representar o Portimonense. E subiu o Académico de Viseu à I Divisão, emblema que treinou com grandes profissionalismo e dignidade entre 1986 e 1989.
Agora, Carlos Alhinho é um nome e duas datas. Só isso? Só isto? Compete-nos responder que não, que não apenas isto nem isso, recordando-o como subido cavalheiro de um meio nem sempre cavalheiresco nem elevado – o Futebol.
Com ele, por ele, recordo outras malogradas figuras da caderneta do jogo: o Vítor Damas, o Chico Gordo (que morreu a trabalhar numa obra da construção civil), o Vítor Baptista (nosso George Best, por tudo e mais alguma coisa), o Zé Beto e o Rui Filipe, o Féher, o Pavão, o Bento e tantos outros, mas tantos, que eu precisaria do resto da paginação do Jornal do Centro desta semana para os chorar com sobriedade.
Sim, é triste, a morte é triste e entristece os vivos. Cabe-nos, vivos, aceitá-la, é certo, mas é nossa competência e nosso direito, também, chamar-lhe, à morte, nomes feios quando ela se arma em parva e nos rouba, antes do tempo, pessoas como o Carlos Alhinho.
Como ele e como toda a gente nossa, afinal.
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Bairro Nosso - 3
Jornal da Bairrada - www.jornaldabairrada.pt



LDLPB: INSCRIÇÕES ABERTAS

Tenho para com este Governo a mesma resignada desconfiança com que frequento sanitários públicos. Será coisa decorrente do meu mau feitio, concedo, mas é verdadeira como a melancolia que resulta de ver chover sem sol ao fundo do túnel.
A roubalheira das petrolíferas, a megalomania de têgêvês e otas & alcochetes, o disparo fogueteiro do preço dos alimentos básicos, o desemprego crónico, a crónica hipocrisia dos campeões morais de pacotilha, a histeria massiva da Selecção “Nacional” da bola, a violação sem anestesia da língua portuguesa nas televisões “nacionais”, a lerda idiotia dos opinadores (como eu), a invencível obtusidade do ex-Povo, a córnea autocracia dos autarcas – tudo isto me faz ingressar na triste LDLPB: Liga dos Daltónicos Limitados ao Preto-e-Branco.
Também vos digo que receio menos, porém, este País do que o futuro. Não o meu futuro pessoal, mas o das minhas filhas. Das minhas filhas, dos vossos filhos e dos nossos netos a haver.
Toda uma geração se queimou para que nos aquecêssemos ao esperançoso lume do 25 de Abril. A cinza dessa queima é isto: este presente gasolineiro, megalómano, básico, crónico, histérico, violado, idiota, obtuso e córneo.
“Vale-nos” que, em vez de à força trinarmos, como antigamente, “Salazar, Salazar, Salazar!”, somos agora todos patrioteiros futeboólicos e todos podemos, agora, urrar “Portugal, Portugal, Portugal!” em brasileiro ortográfico, em aramaico de missa de domingo, em pontapé de canto assinalado com cal não corrosiva de virilhas em caso de queda ou em promissória de prometida chamada para o Luxemburgo no Centro de Desemprego e Insegurança Social mais próximo do seu receptor de TVI.
Em nome da LDLPB, aceito inscrições. Neste jornal.

04/06/2008

Exercício II


Gravura Sonora a Marcador Preto de Mulher
– mais um exercício porassindizer literário –


Viseu, Irish Bar, tarde de 3 de Junho de 2008


Mulher cuja seda dérmica não sei se serena, se só doce, se de sossegada sede só. Ou se tão-só só. Amorenada como pedra-de-Ançã deixada ao sol muitos anos, de amedusadas mãos ondulando instantes ao ar da hora. Bom capitel de dóricos fiambres empernando os fémures, mais ilíaca envergadura à cinta. Pés não grandes, peitorais quilhas emergindo, inversos barcos, à tona da peliça dos sapatos finos e bons. Comovedor balcão mamário: duas meias toranjas cortadas do mesmo pomar do nascimento. Traseiro amelanciado mas breve – de octângula lua, se quatro vezes tocado por alheia mão dupla. Veio tomar café, sopra egipciamente o incenso do cigarro ao balcão, sobre que fulge a laranja do projector. Ao lado, não contando para a gravura, o gravador assenta o ligeiro, que não leviano, panegírico da gravada. Blusa lilás, que enegrece na noite como uma hemorragia de lírio tropical: lírio para alheio colhedor de lírios. Talvez trincadora de cubos de açúcar, suavíssima égua talvez de erógenos serões nunca para o gravador, que grava mas não recebe açúcares. Pouco abaulada circunvalação ventral, onde o umbigo ata um nó de pêssego, algo acima da breve amazónia púbica. É então que pede uma cerveja preta, que recebe na boca como uma carne cinematográfica. Seria precisa uma memória de pano para guarda de tão têxtil memória: a lembrança dela, entre um café negro e uma cerveja preta. Bem mais clara (e mais difusa, sinceramente) é a radiação angélica de sua particular luminura, branco veludo de nigérrimos luminares: astros sintácticos na morfologia toda que é ter nada mas, ainda assim, a um balcão da noite, gravar uma mulher – gravá-la, a ela. Diz o gravador, portanto: mulher cuja seda dérmica etc. Derredor, ou em torno, a galeria incontável (e não contada) de rostos iguais, posto que não dela. Seu rosto? Abreviatura de cosmogonia tão mais particular quão mais amada: como o rosto da Mãe – a do gravador como a vossa. Sons tocam de tímbalos e cimbalinos, míscaros mesquinhos, toca lábia a sílaba sibilante. Adiante: mulher bonita que entristece, até, em luz feliz, num fiambre de viandas, noutra conjugalidade não desperta para esta insónia de gravador, a minha finalmente, que aqui findo, havendo-a gravado, aos três minutos para as três da tarde, ou da noite, num bar da cidade de Viseu, aos três de Junho, dois mil mais oito anos, agora, XXI.

03/06/2008

Exercício I

Gravura Sonora a Lápis Amarelo de Homem
– um exercício porassindizer literário –

Viseu, Cafés Paris e Avenida, tarde de 2 de Junho de 2008



Cara de homem munida de olhos que não olham: bolsas de água roxa escoltam as pupilas muito baças. Colarinho verd’escuro amolecendo ao pescoço rubro de muitos vinhos-do-lavrador-petiscos-caseiros. Argêntea auréola de santo pobre arcoìrisa-lhe a cabeça quase caucasiana de Homem-de-Tollund. Descendo um pouco, mãos vermelhas: rugosas, inexplicáveis como todas. Um colhedor de lírios não botânicos. Sobre a boca, a hemomancha de palavras pisadas, anteriores de mais para que recordadas. Na estatuária móvel do gesto, o porte ainda do furriel-miliciano, colonial tomador de cervejas geladas ao vento abrasador da assassina mocidade patriótica. Ao canto da boca (que não canta), uma verruga em silhueta de meia andorinha com asa de pêlo inteiro. Nas costas das mãos, as sardas irrevogáveis do envelhecimento. Na barriga dos pulsos, a harpa de cobalto das veias a cortar com também irrevogável gilete. A brisa no cabelo fixada pelas lacas do Tempo e do gravador. Lateja-lhe ainda nas têmporas o falhanço no curso de medicina, nilo que às margens da vida lhe abandona o aluvião pútrido da fertilidade da incerteza – isso e o hábito do bagaço matinal. Uma certa tristeza em tudo isto, mas adoçada pelo ócio dos que vêem chover: não olhar não é não ver. A gravura tem predelas, naturalmente: tatuagem flanqueando o alto branco (branco de galinha cozinha) do braço esquerdo, o do lado do coração: Amor-de-Mãe-Angola-1967; a morrinha perpétua de recordações que nem são dele; os pés nus de tantas-mulheres-uma-só-nenhuma; um clarão de gerânios num sonho ou numa cidade desconhecidos; um cheiro a óleo de fígado de bacalhau numa sala de escola primária toda feita de madeira como uma floresta ou um barco; uma ânsia toda marinha pelo mar; a súbita calma perante a evidência dos animais; a lucidez subterrânea dos animais empurrando os cotovelos da pessoa para gestos manuais; a fundura dos sabores da infância na boca envelhecida; e uma estatueta flúor-coruscante da senhora-de-fátima entalada no soalho para equilibrar um psyché coxo. Derredor da cara do homem, o ar riscado de andorinhas como uma cal de respiratória empena. Assomando sobr’ombros, depenados ângulos de asas de ângelos. Este retrato de este homem gravei e digo hoje, fora de toda a bela-arte, em a cidade de Viseu, vinte minutos faltando para as sete da tarde, que é como quem diz noite.

02/06/2008

Finalmente Isto É Tudo a Cores





Fotografia: © Roy Decarava, Window and Stove, 1951
Palavras: Viseu, Café Paris, fim da manhã de 2 de Junho de 2008




Fui azulado pelos olhos do homem pobre da manhã.
As manhãs criam-mo na praça deserta.
Sou por ele visto, e criado, de costas na praça deserta.
Diminuo de silhueta escura afastando-me, ele
azulascura-me, os olhos dele no que sou, no que
deixo de ir sendo.

Vou sempre e nunca venho.

Ele pára em frente ao teatro encerrado, estatuário,
livre, livresco, libertino, sempre
calado, azul sempre.

Pago em pão e trinca de arroz às pombas
o quanto que lhe devo.

As mamas das mulheres bolçam figos de seiva.
Os homens coçam distraidamente as virilhas.
Lojistas do pequeno comércio bocejam metafísicas
de saldo.
A cidade, eterna por uma manhã mais, plasma
licorosos rostos de humanas medusas.
Anjos guardam jardins fechados a ferro.
E uma senhora de dentes estragados sorri na rotunda.

Fuzi(azu)lado fui pelo homem pobre da manhã.
A vida faz-se-me louça de cacos assim.
Das janelas viúvas assomam pergarrostosminhos
de velhas senhoras que olham nos olhos
a antiguidade de quem passa.
Sou visto de costas na corrente das ruas.
Populosas ruas desertas bocando praças.

Um casado de cinquentital anos descarrega caixas
de víveres à porta da minimercearia.
Uma criança amarela penteia um livro de aventuras.
Um trapo escarlate ondula ao vento hematológico.
Um gato de cal furtiva a selva de granito.
E a estragada senhora não sorri já rotundos dentes.

Aonde hei-de ir paradamente ainda?
Tudo o que sempre quis é ainda
uma choupana onde fritar toucinho,
soprar vapor de café num púcaro de folha
– mas pertenço à cidade dos homens azuis,
das crianças escarlates à amarela aventura
da seiva bolçada por guardiães-anjos.

Um restolhar de pássaros pela pele,
a barba raspada na minha cara, mas
os olhos do meu Pai no espelho,
os pássaros poisados na moldura barata do espelho.

Conheço o mapa das minimercearias,
tracejo a cartografia dos mansos loucos da cidade,
dou de cárie com as putas das rotundas,
comove-me a banca de fruta sobre que chove
a cores,
encerraram o teatro e eu não sei onde
ser de frente ante
populosa deserta azul gente.

Nenhuma Margem


Foto: Caramulo, noite de 5 de Dezembro de 2007
Palavras: Viseu, Casa, fim de 1, início de 2 de Junho de 2008



Todo o domingo estive vivo.
Na corrente do tempo estive vivo como um peixe quieto na corrente.
Devo ter merecido a noite que chegou para ser.
Agora é ainda a corrente mas sem outras margens que a das luzes
longínquas de aldeias na falda da outra noite, a montanha.

A aldeia que tudo torna periferia é por dentro do corpo.
A noite adensa-lhe a cegueira da cal riscada de andorinhas.
Os órgãos cantam na catedral de ossos aveludada de linfas e óleos.
Os olhos enevoam para dentro o rio vivo, suas glaucas margens.
E os móveis da casa conspiram a nostalgia florestal.

O domingo quebra-se em espelhos alheios.
Uma pessoa encontra pelo leito do chão fragmentos de pessoas
vitrificadas em estranho estanho.
Da corrente certeza igual resultam os peixes reconhecidos.
Uma pessoa está na sua cúbica casa de gelo olhando dentro.

De manhã as luzes da noite tentam como nós viver além
do necessário.
Depois os homens do lixo e do leite recompõem a narrativa comum.
Todos eles parecem vivos mas são reflexos de vidros piscívoros.
Estar vivo amanhã com linfas e óleos será de novo periférico.

01/06/2008

Fala o Bicho-da-Sede


Imagem: Rossio de Viseu, tarde de 21 de Maio de 2008
Palavras: Viseu, manhã e tarde de 22, mais manhã de 23 de Maio de 2008



******

I

Não quero deixar que mais cosmético do que cósmico
seja o coração que emprego na vida.
Tenho expulsado da minha vida
pessoas maquilhadas e maquiavélicas e bélicas de maquias
que recuso pagar.
Vou agora finalmente mais pelo sossego das minimercearias
onde é possível trocar por morangos os simples bons-dias.
Vou agora finalmente retornar ao livor das oliveiras
encadeadas de azeite no caminho do sul da vida.

Amor, tu, como ninguém, ninguém mais,
sabes que as nossas bocas são as duas metades da rosa.
Adentro, só a cósmica outra rosa, a do coração.
Se fosse para ser cosmética, já a teria eu rendido à estética
dos poemas-croquetes, dos provincianos teatros subsidiados
a esmola de autarquias-feudo’stados e pseudosquerdasrebeldias.

Quero dizer tudo antes de, de novo, nascer na morte.
E pod’até ser que um decassílabo
como o do verso anterior, por sorte,
me faça contar moedas de cuspo.
Serei sempre o gajo mais valente dos bailes,
excepto em caso de porrada ou falta de ginja.
O meu coração, não: o meu coração não é
para entregar a putas, mesmo as que sejam homens.
O meu coração é filho do coração do meu Pai
e também
do da minha Mãe,
ela e ele tudo cósmicos
e cosméticos nada.

II

Toco a primeira pele da água com um único dedo,
forma-se uma gota de cristal na ponta,
que deixo cair ao pé único da árvore,
que a receberá de vivos veios través a terra.

São-nos ainda possíveis estes simples ministérios,
dar água a uma árvore, temos ainda dedos
para tocar a pele primacial do cristal.
Nem sempre é preciso, às vezes chove, mas

muito mais nos custaria naturais não cedermos
a ser, havendo, como ainda há, árvores,
água – e dedos ainda termos.
Em derredor, como pombas em torno de envelhecidos

poetas provincianos mais que provinciais mas jamais municipais,
espargimos o pão de cristal
da água que tanto nos existe, por exemplo nos olhos.
Assim procedo enquanto atendo a enxuta
passagem a pó, través a terra.

III

Quer enquanto puder um homem coincidir com o seu nome,
que aliás não escolheu,
a vida não faz escolhas, é de escolhas feitas antes aliás.
Regressam à África do Sul as chacinas tablóides,
aqui em Viseu não se passa nada, à parte
a histeria da selecção (a escolha) dita nacional,
as pombas e os pardais do Rossio de bagos de trinca de arroz
como estes versos não escolhidos, antes aliás colhidos
do intestino marulhar do idioma na cabeça
de um poeta para sempre provinciano
jamais municipal.

IV

Mais que escolhido, colhido sou por versos nos dias,
brancos intervalos frios das noites frias.
Aceito meu destino tal árvore que, à luz,
sombra fabrica e ar, só tenho de aceitar.

Torna-se-me antiga a mente, de muito antigamente
feita já em meia mão de dias, um punhado de noites.
Comprei um livro do Carlos Fuentes em Peniche, antigamente,
eu era tão novo quão uma pedra lavada pelo mar.

Cada hoje me torna mais outrora, facto transparente
que decorre da simples notícia de ser gente.
Aproveito devagar o meu Sá de Miranda e os meus dias,
a minha idade entardece na cidade como a árvore.

Sou por vezes atacado de alegrias que amaino
com a terceira mão do pensamento, esse país interior
todo tracejado de província e exílio como a e o dos amados
seres que comigo acordam quando durmo e os sonho.

Os pés nus de uma mulher como suspensas albas,
uma indeterminável tarde terminada, ante o mar:
lírios viáticos, provisão do meu caminho na vida
aonde entro como se nunca morresse por dentro.

Oriento-me menos pelos nomes das ruas
que pelo anonimato dos meus mesmos pés
calçados do perpétuo outono das folhas
dos livros, sej’embora junho quase.

Acredito nos animais que mais pelas ruas
nos indicam o caminho do que a pobre gente
fardada de inconsequente humanidade.
E dentro me perco mais que pela cidade.

Dourado couro é cada corpo passado
além da leonina navegação diária.
E à alheia morte franqueamos a própria vida,
que mais nos morre na outra desaparecida.

V

Nada custa apreender o fim
custa sim surpreender a vida
digo
as várias vidas dentro
todas babando a seda de um fim único
somos todos ou nada somos
somos
digo
bichos-da-sede
da seca seda
de corações tudo menos enxutos.

Falo
não por mim
mas além do que sou do que tive
o mar por exemplo
de cuja propriedade
me passei escritura
e ainda
em vão
passo.

Nada tenho
nada me custa
tanto
como tudo.

VI

Cada 23 de Maio, volto a ser alto e de pé.
Não vou ter muitos dias assim.
Acaba-se porém menos para mim
do que para outros o ser que se é.

Morro às dez e meia da manhã.
Volve-se-nos máximo ontem o mínimo amanhã:
mas menos a mim do que aos que seguem dando-me voz,
vos por mim fazendo falar a sós.

Demoro.
Não demoro
mas habito
e vivo.

VII

Terei alguma vez de facto sido deveras?
Que(m) de nós (os vários eus da nossa voz)
poderá um dia contar-se em cursiva reportagem?
Esvairemos tão-só em duas datas nosso nome?
Ou para além disso deixaremos saudades gentis
no pequeno comércio que de nós pequenamente
se sustentou?
Pergunto muito e faço tão pouco,
deveria ter vivido mal menos – e bem mais escrito.

VIII

Gente vem e atravessa-me, fluvial, a terra do corpo,
a areia da minha vida. Não hoje ainda será
que a mandarei parar-se, deter-se de ser gente
na minha vida travessa mais que transversal.
Tudo vejo na língua de Portugal: forma de
clarividente cegueira
que uns tantos atribuirão à bebedeira,
outros a nada, afinal, de especial.

Gente vai, eu vou.

IX

Quando me sujeitei às palavras a infância acabou.
Também não demorei a vida quase toda a perceber
que de elas, alheias e próprias palavras, vinha ela,
a infância final.
Algumas palavras terão de ter trocado um homem e
uma mulher para que um ser sujeitassem a ser,
objecto vivo e respiratório de suas vivas simultâneas
arfadas respirações.
Um homem e uma mulher engendram frases,
a partir das que um filho os une para sempre,
para sempre separados na nova carnação.

Se hoje molho as coisas da água dos olhos
de meu Pai, com as costas das mãos de minha Mãe
as limpo – e como ela apreço sabões e conservas
nas mais baixas estantes das hipermercearias
e das livrarias.

Estou vivo: olha o que chove.

O sol depois da chuva espelha o chovido,
o poente mais amanhece o matinal anoitecido.
Há uma verdade qualquer nas coisas, uma verdade
impessoal e intransmissível à fundamental
mentira do que sou-mos.

Nada sei de botânica e no entanto
piso de flores a procissão da minha vida.
O viático comungo dos verticais acamados domésticos,
coração e mente rodapeados em predelas.

Muito séria e ilegível deve ser
esta coisa de viver,
que tanto lápis gasta a brincar.

X

Ganhei a virgindade logo à primeira vez que me deitei
com uma mulher.
Marmoreei-me, por assim dizer, conhecendo a
alheia carne: apresentei um nome, uma data.

Restarei em paz duas datas – e
nenhum nome.

XI

Gostaria muito de, em vez desta desconcertada loja de versos, ter uma oficina de conserto de calçado, uma missão útil, que não esta desconcertada loja de versos, gostaria muito.
Hemistíquios e cesuras não pagam a vida das pessoas, antes a minha abreviam
e adiam
e anoitecem.
Há quarenta e quatro anos que chove, breves foram sempre os sóis azuis nas praias amarelas, tive um cão cor-de-praia, onde andará agora o meu cão.
No dia 10 de Julho de 1975, Ruy Belo escreve
o aspecto humano de uma terra cultivada.
Há quantos anos espero um verso assim,
há tantos.
Pessoas há coleccionadoras de selos, outras
amanham o ventre da terra ou de um peixe, outras consertam calçado pobre, todas ricamente o fazem, eu desconcerto uma loja de versos que não são de
10 de Julho de 1975,
nem o meu cão
havia nascido.
E as mãos – seu quê de taças, de estrelas, de rosas
consertando os sapatos, finalmente concertando o mundo
e a minha vida.

XII

Vi hoje na televisão um documentário sobre fiordes e glaciares da Noruega. Nunca serei norueguês, nunca terei um barco a bordo do que ir buscar um balde de neve para ter em casa água multimilenar.
Estou represo em Portugal, que apesar de tudo me deu, e dá, a língua portuguesa. Vai o maio, mês outrora português, escuro de chuva, enegrecem de dentro para fora as igrejas encerradas e enceradas, encerram-nas sacristães magros e alcoólicos, enceram-nas as deles mulheres, que são baixas e gordas e desconfiadas como galinhas.
É sábado, a vida não sabe que há-de fazer de mim. Desliguei a televisão, vim entardenoitecer-me ante igrejas escurecidas pelo que chove. Estilhaçou-se o céu em cacos de água de lavar vidros, ei-lo que tine nas pedras da terra.
Homens jogam dominós a um canto do café, as pedras do jogo soam chocas como dentes postiços, a luz é camba, os homens parecem-me igrejas portáteis; as mulheres, capelas tisnadas de uma luz apenas recordada, como a dos verões da infância do mundo, lá para a Noruega, não sei.

XIII

Nada conheço de mais ridícul’irrisório
do que escrever
TOCA-ME
a um tu de poema que não toca
nem a quem
lê,
se ler.
Punheta e poesia começam ambas por tu e por tê:
não em vão.

Canzoada Assaltante