© Josef Koudelka (Portugal, 1976)
Viseu, fim da manhã e entardenoitecer de 1 de Outubro de 2008
1
Era de manhã
um cálice de aguardente que fez e um figo que passou,
artesão de frutos que destila e embalsama.
Homem da cama erguido antes das galinhas,
descido à adega a confirmar o sono perfumado das maçãs
e do cavalo e da vaca.
De lado, como se céu não houvera, instaura-se
o azulejo da alba: repetido espanto,
contadora luminotecnia de quanto falta
para morrer, para ter nascido.
Na cozinha negra, em cima, bule já a mulher:
um ser de fumo que o fogo domina.
Esta é uma história de amor e conjunta solidão
portuguesa.
2
Entre árvores somos
um homem como elas antigo e rumoroso
– ou um cavalo que delas pasta a sombra feita erva verde
– ou alguma criança que nelas lê o último código:
que como elas arderá,
a criança,
em cavalo primeiro,
em antigo homem último
depois.
3
E quanta falta de morrer
e quanta de ter nascido.
4
Sem mulher embora, vivi já no campo,
onde integrei os venenos benignos da terra:
o azeite que mais ilumina quão mais negro,
os laranjais estabelecendo ourivesarias,
o paganismo dos magros cães que o vento açula,
os magros ribeiros engordando o tomate e o gado,
a cegueira táctil dos pinheiros pejados de larvas,
as minhas botas de cavador que nunca cavou.
E as noites iguais ao azeite, mais claras quão mais negras.
5
O local de enco(u)tro
é o amor.
6
Como a floração de pepitas de sal na boca:
clarões de lucidez,
gustativa afinal.
7
Estou sentado a uma mesa de ferro
sobre pedras assente.
Levanto-me, vejo um gato,
remexo as folhas do outono com as mãos
de baixo: as que fechei em botas,
como no ferro me fecho,
sentado.
8
(Pai:)
à chegada do estio de 1978
(abstracção de abstracção: ano e verão: e ter pai),
fomos felizes uma noite
ceando sem pressa.
No pátio ardia de sã febre
a mocidade do pessegueiro.
Não voltaremos trinta anos, nem um ao outro.
9
Era numa aldeia da Beira Alta, tinha-se casado a minha Irmã.
Lembro-me das maçãs e da saúde do frio.
Abriram na terra uma estrada, que de terra ficou.
Recordo o padre a ladrar na igreja contra o 25dabril.
Houve um par de olhos azuis que usava o rosto de uma menina da minha idade para dançar no rancho.
Os burros trabalhavam como homens – e eram, todos eles (soube-o depois), o Platero de Juan Ramón Jiménez.
Depois, tornei-me igual aos homens que trabalhavam a terra e a estrada e a terra – e burro.
10
Neste meu pobre amor a Portugal
entram milionárias coisas como:
o céu lápis-lazúli da Figueira da Foz,
o milho inteiro nas eiras noites inteiras,
o passar do pitrolino na infância,
a muito provável senectude de amanhã, o mar vendo,
as mulheres ainda rolas e peitorais e bosquímanas,
a tabuleta a dizer que há telefone na aldeia,
o celibato essencial da vaca que dá o leite como a fonte dá água,
o rumor dos carros de madeira,
os homens também de madeira junto aos bois,
a inclinação pensativa das dunas,
os largos olhos-de-água dos arrozais,
o mar querendo-vindo-querendo-vindo conhecer a nossa terra,
os relatos iconográficos das santinhas que nunca – oh nunca! – foderam
senão a nossa paciência e o nosso azeite e as nossas caixas-de-esmolas
e os nossos casamentos celebrados à imitação
do mais popular canal de televisão,
as estátuas deste e daquele
quando afinal, ó meu Portugal,
Jorge de Sena e Aristides de Sousa Mendes
e o João Roiz de Castelo-Branco e a Luiza Jorge,
o paul de Arzila e a planura de Minde,
os homens que na rua param um pouco
para ser candeeiros antes do retorno
às casas em que se apagam,
as mulheres que refilam hortaliças e filhos
o dia todo antes do retorno
às casas em que se apagam,
os pescadores fumando sem-filtros sozinhos
no mar colectivo,
a ferida abrasiva da cal quando tudo se nos alenteja,
explicarmos a um inglês ou a um americano onde é Helsínquia
e o que é uma horta e Ruy Belo
e António Osório
(e Jorge de Sena e João Roiz de Castelo-Branco),
este bastar-nos uma piscina para oceanarmos Descobrimentos,
mas não só,
não só ainda que tão sós,
tão cus-de-judas,
tão emprestada ibiza sem marbella nem maravilha,
neste meu amor a Portugal
entra a ruiva fadiga do amanhã,
a nunca vista perdiz que D. Carlos I e Último,
mas o tão famoso Tejo e o pouco reconhecido Douro,
que Mondego é nome de cão.
Penso nos oleiros, eles fazem música com o barro
e eu em Portugal
estou em casa.
Era de manhã
um cálice de aguardente que fez e um figo que passou,
artesão de frutos que destila e embalsama.
Homem da cama erguido antes das galinhas,
descido à adega a confirmar o sono perfumado das maçãs
e do cavalo e da vaca.
De lado, como se céu não houvera, instaura-se
o azulejo da alba: repetido espanto,
contadora luminotecnia de quanto falta
para morrer, para ter nascido.
Na cozinha negra, em cima, bule já a mulher:
um ser de fumo que o fogo domina.
Esta é uma história de amor e conjunta solidão
portuguesa.
2
Entre árvores somos
um homem como elas antigo e rumoroso
– ou um cavalo que delas pasta a sombra feita erva verde
– ou alguma criança que nelas lê o último código:
que como elas arderá,
a criança,
em cavalo primeiro,
em antigo homem último
depois.
3
E quanta falta de morrer
e quanta de ter nascido.
4
Sem mulher embora, vivi já no campo,
onde integrei os venenos benignos da terra:
o azeite que mais ilumina quão mais negro,
os laranjais estabelecendo ourivesarias,
o paganismo dos magros cães que o vento açula,
os magros ribeiros engordando o tomate e o gado,
a cegueira táctil dos pinheiros pejados de larvas,
as minhas botas de cavador que nunca cavou.
E as noites iguais ao azeite, mais claras quão mais negras.
5
O local de enco(u)tro
é o amor.
6
Como a floração de pepitas de sal na boca:
clarões de lucidez,
gustativa afinal.
7
Estou sentado a uma mesa de ferro
sobre pedras assente.
Levanto-me, vejo um gato,
remexo as folhas do outono com as mãos
de baixo: as que fechei em botas,
como no ferro me fecho,
sentado.
8
(Pai:)
à chegada do estio de 1978
(abstracção de abstracção: ano e verão: e ter pai),
fomos felizes uma noite
ceando sem pressa.
No pátio ardia de sã febre
a mocidade do pessegueiro.
Não voltaremos trinta anos, nem um ao outro.
9
Era numa aldeia da Beira Alta, tinha-se casado a minha Irmã.
Lembro-me das maçãs e da saúde do frio.
Abriram na terra uma estrada, que de terra ficou.
Recordo o padre a ladrar na igreja contra o 25dabril.
Houve um par de olhos azuis que usava o rosto de uma menina da minha idade para dançar no rancho.
Os burros trabalhavam como homens – e eram, todos eles (soube-o depois), o Platero de Juan Ramón Jiménez.
Depois, tornei-me igual aos homens que trabalhavam a terra e a estrada e a terra – e burro.
10
Neste meu pobre amor a Portugal
entram milionárias coisas como:
o céu lápis-lazúli da Figueira da Foz,
o milho inteiro nas eiras noites inteiras,
o passar do pitrolino na infância,
a muito provável senectude de amanhã, o mar vendo,
as mulheres ainda rolas e peitorais e bosquímanas,
a tabuleta a dizer que há telefone na aldeia,
o celibato essencial da vaca que dá o leite como a fonte dá água,
o rumor dos carros de madeira,
os homens também de madeira junto aos bois,
a inclinação pensativa das dunas,
os largos olhos-de-água dos arrozais,
o mar querendo-vindo-querendo-vindo conhecer a nossa terra,
os relatos iconográficos das santinhas que nunca – oh nunca! – foderam
senão a nossa paciência e o nosso azeite e as nossas caixas-de-esmolas
e os nossos casamentos celebrados à imitação
do mais popular canal de televisão,
as estátuas deste e daquele
quando afinal, ó meu Portugal,
Jorge de Sena e Aristides de Sousa Mendes
e o João Roiz de Castelo-Branco e a Luiza Jorge,
o paul de Arzila e a planura de Minde,
os homens que na rua param um pouco
para ser candeeiros antes do retorno
às casas em que se apagam,
as mulheres que refilam hortaliças e filhos
o dia todo antes do retorno
às casas em que se apagam,
os pescadores fumando sem-filtros sozinhos
no mar colectivo,
a ferida abrasiva da cal quando tudo se nos alenteja,
explicarmos a um inglês ou a um americano onde é Helsínquia
e o que é uma horta e Ruy Belo
e António Osório
(e Jorge de Sena e João Roiz de Castelo-Branco),
este bastar-nos uma piscina para oceanarmos Descobrimentos,
mas não só,
não só ainda que tão sós,
tão cus-de-judas,
tão emprestada ibiza sem marbella nem maravilha,
neste meu amor a Portugal
entra a ruiva fadiga do amanhã,
a nunca vista perdiz que D. Carlos I e Último,
mas o tão famoso Tejo e o pouco reconhecido Douro,
que Mondego é nome de cão.
Penso nos oleiros, eles fazem música com o barro
e eu em Portugal
estou em casa.
2 comentários:
bom.muito bom.
obrigado, em nome da Nação.
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