I
Viseu, manhã e tarde de 8 de Agosto de 2008
Esta manhã acordei de golpe na Noruega.
Não tive de abrir os olhos para identificar a fraude, uma mais no somatório da minha vida.
A fraude e a febre com que as palavras sitiam a minha vida, substituindo-se às sensações: acordar na Noruega ou estar vivo ainda.
Depois (ou antes, ou durante) os cavalos irromperam pela cidade – e não era já a cidade, mas um campo esmagado pela neve, uma neve infinita e negra e apunhalada de abetos, ao longe o olho cego de um lago.
Da rua, chegava música eclesiástica.
Papagaios, como jóias vivas, janelavam o íntimo horror do exílio.
Senti o cheiro a roupa quente que provinha do quarto onde a minha mulher passava a ferro.
Pus-me a ser balbuciado por palavras:
catálogo, comboio, península, arrumador, faia, balde, evangelho, roupa, catálogo outra vez, cavalo, decisão, moeda, frasco.
Deixei-me estar um pouco, aceitando a Noruega como uma criança admite uma festa na cabeça.
A mulher rondou entretanto (entre tão pouco) as outras divisões da casa, então o perfume do café mudou o da roupa, que encontrei pronta e pessoal sobre a cama ao voltar do chuveiro.
Ia pensando na costa marítima, em grandes barcos dividindo o horizonte, sombras horizontais na luz perpendicular, em ramalhetes eléctricos de estrelas de outro estio, que não viverei.
Se pude sentir o frio milenar dos icebergues sob o chuveiro quase a ferver, foi porque, por assim dizer, posso glaciar as fraudes: as palavras que me as instituíram em vida.
Molhei bolachas de centeio no café, restaurei a temperatura do sangue à janela, a que tomei fundos haustos do ar estremecido pela chuva em breve. Ainda não eram as oito da manhã, a mulher pagou-me uma bica no café do centro histórico, perto da estátua toda verde de um rei qualquer e norueguês.
II
Viseu ,tarde de 12 de Setembro de 2008
De manhã caiu-nos uma chuva de caranguejos mínimos.
Infiltraram-se por todo o lado babujando tempo, tempo, tempo.
E o tempo pôs-se a andar para trás como é próprio dele e deles.
Os cigarros cresciam-me na mão.
Os pêlos da cara recrudesciam-me para dentro.
Olhares mudaram de cor e de década.
Estátuas mexeram-se.
Sorriram, tarjados a negro embora, os rostos policopiados da necrologia dos jornais.
As mais velhas pombas enrolaram-se antes do retorno ao ovo.
Casados há quarenta anos, um homem e uma mulher beijaram-se as bocas sem ser por festa.
Os caranguejitos tomaram o bolor das paredes, a pátina das vidraças, sugaram dos olhos das velhas as cataratas da cegueira, reescreveram a baba perdida dos passos e dos paços, treparam as casas brancas que nos largos amparam a História e a Agonia.
E de manhã começa o dia.
Viseu, manhã e tarde de 8 de Agosto de 2008
Esta manhã acordei de golpe na Noruega.
Não tive de abrir os olhos para identificar a fraude, uma mais no somatório da minha vida.
A fraude e a febre com que as palavras sitiam a minha vida, substituindo-se às sensações: acordar na Noruega ou estar vivo ainda.
Depois (ou antes, ou durante) os cavalos irromperam pela cidade – e não era já a cidade, mas um campo esmagado pela neve, uma neve infinita e negra e apunhalada de abetos, ao longe o olho cego de um lago.
Da rua, chegava música eclesiástica.
Papagaios, como jóias vivas, janelavam o íntimo horror do exílio.
Senti o cheiro a roupa quente que provinha do quarto onde a minha mulher passava a ferro.
Pus-me a ser balbuciado por palavras:
catálogo, comboio, península, arrumador, faia, balde, evangelho, roupa, catálogo outra vez, cavalo, decisão, moeda, frasco.
Deixei-me estar um pouco, aceitando a Noruega como uma criança admite uma festa na cabeça.
A mulher rondou entretanto (entre tão pouco) as outras divisões da casa, então o perfume do café mudou o da roupa, que encontrei pronta e pessoal sobre a cama ao voltar do chuveiro.
Ia pensando na costa marítima, em grandes barcos dividindo o horizonte, sombras horizontais na luz perpendicular, em ramalhetes eléctricos de estrelas de outro estio, que não viverei.
Se pude sentir o frio milenar dos icebergues sob o chuveiro quase a ferver, foi porque, por assim dizer, posso glaciar as fraudes: as palavras que me as instituíram em vida.
Molhei bolachas de centeio no café, restaurei a temperatura do sangue à janela, a que tomei fundos haustos do ar estremecido pela chuva em breve. Ainda não eram as oito da manhã, a mulher pagou-me uma bica no café do centro histórico, perto da estátua toda verde de um rei qualquer e norueguês.
II
Viseu ,tarde de 12 de Setembro de 2008
De manhã caiu-nos uma chuva de caranguejos mínimos.
Infiltraram-se por todo o lado babujando tempo, tempo, tempo.
E o tempo pôs-se a andar para trás como é próprio dele e deles.
Os cigarros cresciam-me na mão.
Os pêlos da cara recrudesciam-me para dentro.
Olhares mudaram de cor e de década.
Estátuas mexeram-se.
Sorriram, tarjados a negro embora, os rostos policopiados da necrologia dos jornais.
As mais velhas pombas enrolaram-se antes do retorno ao ovo.
Casados há quarenta anos, um homem e uma mulher beijaram-se as bocas sem ser por festa.
Os caranguejitos tomaram o bolor das paredes, a pátina das vidraças, sugaram dos olhos das velhas as cataratas da cegueira, reescreveram a baba perdida dos passos e dos paços, treparam as casas brancas que nos largos amparam a História e a Agonia.
E de manhã começa o dia.
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