I
Figueira da Foz, manhã de 27 de Outubro de 2008
(84 anos da Mãe)
Manhã muito cedo passo à beira dos pinhais a cuja beira as senhoras-de-aluguer perdem os nomes para sempre e a virgindade de cada vez.
A solidão é haver gente a mais no mundo, neste mundo – no outro, não faz diferença.
É ornitológica, a solidão do guarda-fios empoleirado no poste: é de alta tensão, dele a solidão.
Símile e símia é do homem do realejo a solidão: tanta gente, um realejo só.
Gregária é a solidão do carniceiro corvo comedor de canídeas carcaças atropeladas.
Costumo ver, tarde muito tarde, as solitárias senhoras-de-aluguer beirando a devassada virgindade dos pinhais. Ao longe, a fábrica papeleira fuma celulose para o mar.
II
Figueira da Foz, manhã e tarde de 29 de Outubro de 2008
Somos pobres, não temos neve.
Temos geada com fartura mas neve não.
O lugar tem uma capela que sobe branca no azul frio da manhã, mas não neve.
Apolos de motorizada e dionísios de bicicleta demandam os ofícios través os campos queimageados fincados no chão pelas estalagmites (ouro e esmeralda) que as laranjeiras são.
Somos pobres, não temos neve.
Temos geada, mas neve não.
Na televisão dizem que neste país só há neve na Estrela e nas amendoeiras em flor, mas, mesmo assim pobres, sabemos que a televisão inventa sítios e fenómenos para sermos felizes acreditando que sim, que florescem as amendoeiras, que uma serra chega a estrela. Mas não.
Somos pobres, não temos neve.
Temos geada, mas neve não.
Postes ambulantes, uiva-nos o vento, lobo transparente.
(Espera!
– diz a cotovia
que nos sonhos fala
mas acordada não.
Espera!
Ainda é a Primavera,
verás não tarda se faz Verão.)
Somos pobres, não temos neve.
Temos geada, mas neve não.
Fomos decerto ricos na infância, essa breve fortuna esbanjada sem pecado nem retorno. Natalícios de tal fugaz eternidade, excursionistas às amendoeiras sem flor nem neve nem estrela nem nada, pois agora
somos neve em pleno Verão.
III
Figueira da Foz, tarde de 29 de Outubro de 2008
Que se passou já,
que vai ’inda passar-se
nestas casas
que nem sonhos meus habitam?
Que mulheres de que homens para que
crianças?
Que estimados animais as correrão
em prisão?
Que sonhos habitarão estas
não minhas casas?
IV
Ibidem
Toca devagar a face esquerda dele,
são mais jovens que tu as tuas mesmas mãos,
não ele.
Habita-o depressa, antes que ele te esqueça.
Antes que dele mesmo se esqueça ele em ti.
Aprenderás à tua custa quão velozes
são hoje as famílias, quão velocíssimos
os casais.
Já não há, aliás, casais, mas
pares.
Nem, aliás, pares, mas
parelhas.
Indivíduos-legos, peças-pessoas,
mecanografias descartáveis
e descartadas
e mecanizadas
e mal agrafadas.
Toca ainda a face dele
(a direita agora)
e despede-te dele
e vira-te
e diz
olá
ao próximo.
E ama ao próximo menos
que a ti mesma,
não sejas parva.
V
Ibidem
Quem te dera uma frivolidade.
Quem te dera abocar o morango químico.
Quem te dera, em lugar de maneiras,
ter ademanes, lenços de pele,
calcanhares não gretados
a partir do coração.
Quem te dera não ter fissuras.
Quem te dera fressuras.
Quem te não dera aquele avô,
estes vizinhos, o telefone verde-
-ranho, quem te dera
a outro corpo, a outra vida.
VI
Ibidem
Dona Julieta de Menezes,
entradota já de idade,
usava sonhar (e sonhava) às vezes
nunca ter dobrado a mocidade.
Sonhava – e era feliz, coitadinha,
Dona Julieta de Menezes.
Um dia, morreu – e, muito sequinha,
foi ter co’s ancestros, todos portugueses.
VII
Alhais (Carriço, Pombal), noite de 29 de Outubro de 2008
Rosto, ressequida rosa,
fluente expositor de vísceras,
mapa do mundo, terra de ninguém
por alguém desterrado habitada,
fonte e foz, tu e ele e nós,
sítio onde a criança jogou às escondidas
e se perdeu,
dela deixando um apenas eu,
a outro qualquer ele igual aliás,
o rapaz,
como nós,
como tu também,
retrato de retrato de rosto de rosto,
romeiro de marias, romeu de romarias,
pano inconsútil e cru,
ázima levedura, bandeira d’amargura,
cartaz para levar sobre o pescoço a casamentos e funerais,
entre cartazes outros mas iguais,
rasto (de resto, resto de rasto) de rasto,
um olho escreve, o outro lê,
juntam-se os dois na boca para cegar de silêncio,
segando palavras
(rosto),
(dobrada a mocidade),
(gretado o coração),
(habitado o outro),
(estimado o animal),
(esbanjada a infância),
(limitado-o-tempo),
(devassada a virgindade),
rosto, ressequida rosa.
2 comentários:
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E ama ao próximo menos
que a ti mesma,
não sejas parva.
Como pode um homem, sexo masculino a bem dizer, escrever tal?- Isto é um elogio!
Todo o poema contém verdades verdadeiras (eu que não sou grande apreciadora de poemas- acho que não aprendi a gostar)
Mas então esta última estrofe é divinal -é um conselho que todas as mulheres deviam seguir , se não fossem parvas( que são invariavelmente quando toca a assuntos do coração)- o que eu não percebo é como é que um homem (XY) consegue ter esta percepção desta desgraça.
rosa
para---------ti
nunca-te-vou-puder-escrever
o-que-_a
tua-escrita-levanta
LM
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