Fotografia: © Sandra Bernardo (Coimbra, 21 de Outubro de 2008)
Tábua
I. Soneto Contador
Buarcos, Figueira da Foz, manhã de 21 de Outubro de 2008
II. Poema (com Vento) para Logo
Buarcos, Figueira da Foz, tarde de 21 de Outubro de 2008
III. Instantâneos de Cidade com Rio, a Minha
Fonte Nova, Pombal, manhã de 26 de Outubro de 2008
I. Soneto Contador
Buarcos, Figueira da Foz, manhã de 21 de Outubro de 2008
Passados vivo já dias futuros,
o muito já vivido pouco conta.
Há noites derramadas, dias duros
e é sempre à Lua que o Sol aponta.
E se ora me toma o sono doce,
se m’adentra um domingo sempiterno,
então sonho com quem aqui me trouxe
e com quem de mim veio no inverno.
Por vezes não se vê a lua tal
a que um tal sol aponta apontador.
Há vozes no silêncio visceral
(e nozes ao fundo do corredor).
Futuros vivo já dias passados:
me contam que eu não conto, contador.
II. Poema (com Vento) para Logo
Buarcos, Figueira da Foz, tarde de 21 de Outubro de 2008
Encrespa o vento a água dos olhos
na tarde que o mar vaza por noite.
Céu de sobrolho carregado.
Chicoteadas árvores: nenhum pássaro
à vista: nenhuma terra anunciada,
pois.
A beirais se recolhem os pobres homens,
as mulheres pobres, os magérrimos cães
soletradores da escrita dos caminhos.
Longe, um eucaliptal recolhe azul
à cripta diagonal, vem do mar crescendo
um borrão de irado Pintor, de crespo
deus intemperioso.
Agora não estou a pensar.
A uma janela alta, recorto dos olhos
o escorrimento não voluntário.
Gosto da selvajaria eólica, sempre gostei.
Atendi o telefone, mordi uma fatia de pão,
desejei o mar na antecipação de nunca
(mais) embarcar.
Encrespa o vento etc.
Logo vou ao bar.
III. Instantâneos de Cidade com Rio, a Minha
Fonte Nova, Pombal, manhã de 26 de Outubro de 2008
Os cantores vão a pé pela beira-rio.
Salgueiros pranteiam jacintos-de-água.
Cacos de tijolo etruscam o chão dos hojes.
Crianças ciganas vão ao peixe à toca e às lampreias.
Grandes mulheres lavam de branco roupa de cama.
Senhoras pasmam tais periquitos a janelas.
Rostos alguns rosáceas semelham: trabalhadas pedras.
Algumas casas são cabeças de navios na procela aterrada.
Ingerem açúcares líquidos as andorinhas e os ciclistas.
A minha cidade é portuguesa até de costas.
As pessoas são ambulatórias unidades de queimados.
No carrinho, o bebé floresce de sono.
Maçãs avermelham a banca, glóbulos de polpa.
Uma cascata de cabelo desce a mulher até às ancas.
Os dançarinos desempregados na paragem do autocarro.
Uma pensão empobrece o escritor sem casa.
Num livro, a clarividente cegueira grega das estátuas.
O bronze de pensar, a lata da vida.
Sacas de serapilheira demolham tremoços no leito.
Leitor de jornais com suspensórios compra pão.
Guitarristas e bombeiros ginjam cedo na Irene.
Mulata-se de fria sombra já a manhã.
Rapaz de cabeça quadrada desenha comboios (um fio de baba).
A montante, um naufrágio de laranjeiras.
Mulher assassina um galo para canja de arroz.
Um cão trota, inconsciente feliz da vida.
Periquitam as damas janelares, nádegas contra os retratos.
Um bule de chá branco com cromo inglês azul.
Queijos e presuntos cheiram-se mutuamente como cães.
Mastins mastigam ossos de borracha em pátios de cimento.
As mamas das mulheres instigam a lactofagia.
Púbis tarantulam venenosas comichões.
À porta da farmácia, a santinha drogada.
Polícias levitam como melros de caqui.
De navalha, o barbeiro sonha pescoços.
De borracha, mastins mastigam ossos.
As estradas de saída: infindas caligrafias.
Ponte de pau, rápida sombra na corrente (nossa vida).
Alto, o mosteiro crivado de oxiúros fradescos.
Uma profusão de bolos entre máquinas do frio.
Gerânios cancerígenos e olhares entristecidos.
Bocas onde a febre arde, palavrosa.
Palavra e rosa – e azeitona e pez.
Um adejar de membranas no amante.
Diamante com pedra lunar no mostrador.
Um padre-cruz em argila todo cagado das moscas.
Calções de pano cru na montra ao lado.
Secretas auto-sevícias das mulheres-polícias.
Homem com menino ao colo: dois gigantes.
Cinquentona em calças de ganga: ânfora anacrónica.
Maná de farinha na padaria calorífera.
Prótese dentária rindo-se sozinha como os loucos.
(E antigamente, o meu Pai muito jovem por aqui.
E este rio onde a minha Mãe caiou lençóis.
E eu, que só queria uma maçã vermelha.
Nisto, consciente, infeliz da vida, o cão pára.)
I. Soneto Contador
Buarcos, Figueira da Foz, manhã de 21 de Outubro de 2008
II. Poema (com Vento) para Logo
Buarcos, Figueira da Foz, tarde de 21 de Outubro de 2008
III. Instantâneos de Cidade com Rio, a Minha
Fonte Nova, Pombal, manhã de 26 de Outubro de 2008
I. Soneto Contador
Buarcos, Figueira da Foz, manhã de 21 de Outubro de 2008
Passados vivo já dias futuros,
o muito já vivido pouco conta.
Há noites derramadas, dias duros
e é sempre à Lua que o Sol aponta.
E se ora me toma o sono doce,
se m’adentra um domingo sempiterno,
então sonho com quem aqui me trouxe
e com quem de mim veio no inverno.
Por vezes não se vê a lua tal
a que um tal sol aponta apontador.
Há vozes no silêncio visceral
(e nozes ao fundo do corredor).
Futuros vivo já dias passados:
me contam que eu não conto, contador.
II. Poema (com Vento) para Logo
Buarcos, Figueira da Foz, tarde de 21 de Outubro de 2008
Encrespa o vento a água dos olhos
na tarde que o mar vaza por noite.
Céu de sobrolho carregado.
Chicoteadas árvores: nenhum pássaro
à vista: nenhuma terra anunciada,
pois.
A beirais se recolhem os pobres homens,
as mulheres pobres, os magérrimos cães
soletradores da escrita dos caminhos.
Longe, um eucaliptal recolhe azul
à cripta diagonal, vem do mar crescendo
um borrão de irado Pintor, de crespo
deus intemperioso.
Agora não estou a pensar.
A uma janela alta, recorto dos olhos
o escorrimento não voluntário.
Gosto da selvajaria eólica, sempre gostei.
Atendi o telefone, mordi uma fatia de pão,
desejei o mar na antecipação de nunca
(mais) embarcar.
Encrespa o vento etc.
Logo vou ao bar.
III. Instantâneos de Cidade com Rio, a Minha
Fonte Nova, Pombal, manhã de 26 de Outubro de 2008
Os cantores vão a pé pela beira-rio.
Salgueiros pranteiam jacintos-de-água.
Cacos de tijolo etruscam o chão dos hojes.
Crianças ciganas vão ao peixe à toca e às lampreias.
Grandes mulheres lavam de branco roupa de cama.
Senhoras pasmam tais periquitos a janelas.
Rostos alguns rosáceas semelham: trabalhadas pedras.
Algumas casas são cabeças de navios na procela aterrada.
Ingerem açúcares líquidos as andorinhas e os ciclistas.
A minha cidade é portuguesa até de costas.
As pessoas são ambulatórias unidades de queimados.
No carrinho, o bebé floresce de sono.
Maçãs avermelham a banca, glóbulos de polpa.
Uma cascata de cabelo desce a mulher até às ancas.
Os dançarinos desempregados na paragem do autocarro.
Uma pensão empobrece o escritor sem casa.
Num livro, a clarividente cegueira grega das estátuas.
O bronze de pensar, a lata da vida.
Sacas de serapilheira demolham tremoços no leito.
Leitor de jornais com suspensórios compra pão.
Guitarristas e bombeiros ginjam cedo na Irene.
Mulata-se de fria sombra já a manhã.
Rapaz de cabeça quadrada desenha comboios (um fio de baba).
A montante, um naufrágio de laranjeiras.
Mulher assassina um galo para canja de arroz.
Um cão trota, inconsciente feliz da vida.
Periquitam as damas janelares, nádegas contra os retratos.
Um bule de chá branco com cromo inglês azul.
Queijos e presuntos cheiram-se mutuamente como cães.
Mastins mastigam ossos de borracha em pátios de cimento.
As mamas das mulheres instigam a lactofagia.
Púbis tarantulam venenosas comichões.
À porta da farmácia, a santinha drogada.
Polícias levitam como melros de caqui.
De navalha, o barbeiro sonha pescoços.
De borracha, mastins mastigam ossos.
As estradas de saída: infindas caligrafias.
Ponte de pau, rápida sombra na corrente (nossa vida).
Alto, o mosteiro crivado de oxiúros fradescos.
Uma profusão de bolos entre máquinas do frio.
Gerânios cancerígenos e olhares entristecidos.
Bocas onde a febre arde, palavrosa.
Palavra e rosa – e azeitona e pez.
Um adejar de membranas no amante.
Diamante com pedra lunar no mostrador.
Um padre-cruz em argila todo cagado das moscas.
Calções de pano cru na montra ao lado.
Secretas auto-sevícias das mulheres-polícias.
Homem com menino ao colo: dois gigantes.
Cinquentona em calças de ganga: ânfora anacrónica.
Maná de farinha na padaria calorífera.
Prótese dentária rindo-se sozinha como os loucos.
(E antigamente, o meu Pai muito jovem por aqui.
E este rio onde a minha Mãe caiou lençóis.
E eu, que só queria uma maçã vermelha.
Nisto, consciente, infeliz da vida, o cão pára.)
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