O poema é, enfim, o que é.
FRUTO
Quando o dia se acaba todo em noite, tenho por (recente) hábito assistir à epifania lunar das árvores de fruto. Explico-me: elas (as macieiras, as figueiras, as mulheres, as laranjeiras, os pessegueiros) alunam os crepúsculos de uma espécie de gaze mental que só pode resultar ou de maravilha da natura ou de pancada da neura.
Ainda hoje. Subia a pé uma ladeira quase tão íngreme quanto a memória. Levava comigo um saco com pão, maçãs e cavacos de lenha. À minha esquerda, numa eira, uma mulher recolhia roupa do arame. Aos pés dela, ardia de febre ou de ouro uma fileira de abóboras que cheiravam a amarelo forte. À esquerda dela, uma nespereira vigorava como um fantasma benigno. Era de folhas negras, que a noite tombada de fresco prateava, lá está, de um luar de epifania. Entrei no café mais rural do mundo, assentei a carcaça numa cadeira de plástico e mandei de vir de beber. Bebi. Vieram buscar-me passado um tempo, deram-me de comer, vim aqui contar-vos isto – e sei que, lá fora, a instalação da noite ainda não cedeu aos vagidos do novo dia.
Era para vos ter escrito certas coisas que penso quando, nos cafés rurais, o televisor segrega a baba da idiotização do povo. Não vale a pena. Prefiro dizer-vos da insensatez (minha) de pasmar perante as árvores, verdadeiras forjadoras das noites. Nada adianta ao mundo, mas também o não diminui, espero.
Crise económica, aquecimento global, gangs e bang-bangs – nada me interessam. Nem já suicídios de adolescentes que perceberam a (a)tempo que nunca haveriam de ser as catarinas-bárbaras-furta-marães do futuro breve. Nem a insolência da corrupção. Nem zamericanos. Nem os senhores padres activistas de uma espécie de bloco-de-esquerda de altar. Nada.
Interessa-me ganhar a vida. Interessa-me não perder a vida. E é quando a minha vida, por uma noite, se acaba em epifanias lunares que chego a ousar a esperança de o novo dia me fazer dar fruto como uma árvore, pão e lenha à parte.
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FRUTO
Quando o dia se acaba todo em noite, tenho por (recente) hábito assistir à epifania lunar das árvores de fruto. Explico-me: elas (as macieiras, as figueiras, as mulheres, as laranjeiras, os pessegueiros) alunam os crepúsculos de uma espécie de gaze mental que só pode resultar ou de maravilha da natura ou de pancada da neura.
Ainda hoje. Subia a pé uma ladeira quase tão íngreme quanto a memória. Levava comigo um saco com pão, maçãs e cavacos de lenha. À minha esquerda, numa eira, uma mulher recolhia roupa do arame. Aos pés dela, ardia de febre ou de ouro uma fileira de abóboras que cheiravam a amarelo forte. À esquerda dela, uma nespereira vigorava como um fantasma benigno. Era de folhas negras, que a noite tombada de fresco prateava, lá está, de um luar de epifania. Entrei no café mais rural do mundo, assentei a carcaça numa cadeira de plástico e mandei de vir de beber. Bebi. Vieram buscar-me passado um tempo, deram-me de comer, vim aqui contar-vos isto – e sei que, lá fora, a instalação da noite ainda não cedeu aos vagidos do novo dia.
Era para vos ter escrito certas coisas que penso quando, nos cafés rurais, o televisor segrega a baba da idiotização do povo. Não vale a pena. Prefiro dizer-vos da insensatez (minha) de pasmar perante as árvores, verdadeiras forjadoras das noites. Nada adianta ao mundo, mas também o não diminui, espero.
Crise económica, aquecimento global, gangs e bang-bangs – nada me interessam. Nem já suicídios de adolescentes que perceberam a (a)tempo que nunca haveriam de ser as catarinas-bárbaras-furta-marães do futuro breve. Nem a insolência da corrupção. Nem zamericanos. Nem os senhores padres activistas de uma espécie de bloco-de-esquerda de altar. Nada.
Interessa-me ganhar a vida. Interessa-me não perder a vida. E é quando a minha vida, por uma noite, se acaba em epifanias lunares que chego a ousar a esperança de o novo dia me fazer dar fruto como uma árvore, pão e lenha à parte.
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UMA POUCA DE NOITE
Casa, Souto, Pombal, noite de 19 de Outubro de 2008
(1)
ENDURECIMENTO, NOVEMBRO E ALHEAMENTO
Então, a luz endurece e estatela-se no céu já nocturno
e estatelando-se se estrela de esmigalhados astros, um
que outro jacto alto luzindo as invejáveis viagens para sempre
nos alheias.
Em baixo, vulgares carros rumam cegos como carrosséis.
Acabado quase, o domingo os obriga ao retorno a frias
garagens onde, tais igrejas sem imagens, dormirão
como frios cavalos sem memória de pastagens.
Sem uma mulher em casa, pode ser mais difícil.
Bem mais precário pode ser, sem um homem em casa.
Nem perto, a um canto dourado e respiratório, uma criança
exerça a qualidade mediúnica do seu sono premonitório.
Com o rolar de outubro para a valeta de alumínio de novembro,
as albas são mais duras, emaranha-se nos pinheiros a noite,
ciosa da nova hora e do despertar dos homens, das mulheres,
das crianças para sempre lhe alheias.
(2)
AB OVO
Hemos nascido: quanto bastou foi para infantes termos sido.
Alguns, felizes de feliz infância: hoje nada, tudo porém outrora,
esse nascer em um pobre país assim ainda dotador de ricas
infâncias como ovos de si mesmo cheias.
(3)
ANDORINHAS
Andorinhas: de si mesmas andores e santinhas.
(4)
RAPARIGA RINDO
Da rapariga que ao ar cristal torna rindo, guardo para vós
a perfeita dentição, que cotejar apenas posso a gargantilha
de nácar à boca subida para enfeite e tesouro do rosto
e do riso.
(5)
SONHADORES CAPAZES SEJAMOS
Agora vamo-nos deitar ao mar
do sono.
Cada um de nós de sua casa-rocha,
agora se vai deitar.
De horizontais falésias sejamos sonhadores capazes,
de verticais andorinhas riscados.
A espuma nos poalhe de branda nata branca
os corações mumificados pelo abandono
do sono,
diária morte nocturna
a nós deitada.
Casa, Souto, Pombal, noite de 19 de Outubro de 2008
(1)
ENDURECIMENTO, NOVEMBRO E ALHEAMENTO
Então, a luz endurece e estatela-se no céu já nocturno
e estatelando-se se estrela de esmigalhados astros, um
que outro jacto alto luzindo as invejáveis viagens para sempre
nos alheias.
Em baixo, vulgares carros rumam cegos como carrosséis.
Acabado quase, o domingo os obriga ao retorno a frias
garagens onde, tais igrejas sem imagens, dormirão
como frios cavalos sem memória de pastagens.
Sem uma mulher em casa, pode ser mais difícil.
Bem mais precário pode ser, sem um homem em casa.
Nem perto, a um canto dourado e respiratório, uma criança
exerça a qualidade mediúnica do seu sono premonitório.
Com o rolar de outubro para a valeta de alumínio de novembro,
as albas são mais duras, emaranha-se nos pinheiros a noite,
ciosa da nova hora e do despertar dos homens, das mulheres,
das crianças para sempre lhe alheias.
(2)
AB OVO
Hemos nascido: quanto bastou foi para infantes termos sido.
Alguns, felizes de feliz infância: hoje nada, tudo porém outrora,
esse nascer em um pobre país assim ainda dotador de ricas
infâncias como ovos de si mesmo cheias.
(3)
ANDORINHAS
Andorinhas: de si mesmas andores e santinhas.
(4)
RAPARIGA RINDO
Da rapariga que ao ar cristal torna rindo, guardo para vós
a perfeita dentição, que cotejar apenas posso a gargantilha
de nácar à boca subida para enfeite e tesouro do rosto
e do riso.
(5)
SONHADORES CAPAZES SEJAMOS
Agora vamo-nos deitar ao mar
do sono.
Cada um de nós de sua casa-rocha,
agora se vai deitar.
De horizontais falésias sejamos sonhadores capazes,
de verticais andorinhas riscados.
A espuma nos poalhe de branda nata branca
os corações mumificados pelo abandono
do sono,
diária morte nocturna
a nós deitada.
3 comentários:
À procura de uma epígrafe, andei com as Odes do Reis às voltas, no último serão.
gosto sempre de te re(ler). agora mais perto.
Amigo:
Dói até ler tanta frecura sob e sobre a Língua que (re)fundas, a cada olhar escrito! Dói bem.
Abraça!
JJC
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